Existem muitas formas de armazenar memórias. Na minha mente, cada lembrança é uma pintura, com suas cores, traços e detalhes. Qual quadro não sai da sua cabeça?
Óleo ou Aquarela? é um conto escrito por Aline Hack, distribuído em primeira mão aqui no Contos Iradex.
Óleo ou Aquarela?
Todas as minhas boas memórias viraram quadros na minha mente. Ninguém nunca soube explicar essa conexão que eu tenho entre as memórias e pinturas imaginárias.
Eu não pinto, mas já pintei. Eu não desenho, mas já desenhei. Hoje só faço isso tudo dentro da minha cabeça.
Enquanto as pessoas gravam imagens em filmes e fotografias, eu imagino papeis de alta gramatura com belíssimos borrões – se for em aquarela, melhor ainda. E por vezes sinto que é suficiente captar aquele momento somente na memória, para que ele vire um esboço posteriormente. Assim, vou colecionando milhares de rabiscos no meu scratch mental.
Eu me lembro exatamente do tom da folhagem da árvore que sentamos embaixo. Era nosso primeiro dia, nós tínhamos acabado de nos conhecer pessoalmente.
É engraçado o que a internet faz com a gente. Nós igualmente conhecemos pessoas na vida real, mas é nas afinidades que as amizades perpetuam em qualquer espaço. Parecia que eu te conhecia há décadas; hoje, faz quase uma década que te conheço.
E lá estávamos nós duas, sentadas naquela grama bem verde e viva, com cheiro úmido. Consigo ver no meu esboço memorável aquela árvore grande, possivelmente um jatobá, com uma sombra deliciosa na qual sentamos embaixo. Sim, era um jatobá, com aquela casca ressequida, um mix de burnt sienna com brown e orange – talvez – e uma folhagem bem escura e viva que talvez eu alcançaria com um deep green misturado com cerulean blu, daquela paleta Van Gogh que ganhei e nunca tive coragem de abrir.
Eu lembro da sua mochilinha bege, com coraçõezinhos jogadas despretensiosamente no chão, cheia de livros de francês, o fundo estava bem sujo, como se já tivesse rolado em vários cantinhos por aí.
- Vamos sentar aqui?
Eu estava morrendo de calor naquela cidade, nunca tinha pensado que Recife era tão quente.
- Esse lago é artificial?
- É a nascente do laguinho da UFPE.
- Sinto que estou derretendo. Por mim, pulava aí dentro, deve ser geladinho.
Ela riu.
Eu realmente estava derretendo naquele dia azul cobalto, sem nuvens no céu e um mormaço, que possivelmente nenhuma pintura poderia descrever. Mas ainda vejo na pintura mental nós duas sentadas ali, rindo de amenidades enquanto a imagem do encontro e as sombras do resto do jardim se formavam sem nenhum pudor na água límpida viridian.
Meu celular toca, é o whatzapp. Uma mensagem sua, com uma foto da Torre Eiffel iluminada em amarelo. Nosso cabelo está quase igual e me sinto muito feliz ao ver o sorriso da sua conquista. Um sorriso de Monalisa? Talvez.
Me pego novamente desenhando e imaginando como seria legal nós duas sentadas na grama ali em frente. E nessa saudade louca, acabo de pendurar a gravura do dia fatídico da universidade na minha parede de memórias, esperando que um dia eu possa pendurar ao lado dela a imagem de duas amigas sorrindo, sentadas em uma toalha, tomando vinho e comendo croissants à luz e ao brilho da grande torre europeia, a qual tantos outros já pintaram.
Esse conto foi escrito por Aline Hack para o Contos Iradex. Para reprodução ou qualquer assunto de copyright o autor e o blog deverão ser consultados.