Águas podem ser tão imprecisas quanto o coração humano.
Águas é um conto escrito por Lucas Pimentel, distribuído em primeira mão aqui no Contos Iradex. Embarque nessa leitura.
Águas
Lembro como se fosse o sol. As estrelas eram espectros de um jovem brincando de ser. Ser belo e convicto da sua beleza. Da sua dor.
Em tardes de calor, seu corpo se contorcia lembrando das águas de rios que antes o banhava. Nadava em todas as direções. Quando não havia inspiração, seu corpo permanecia ali, imóvel. Talvez refém de qualquer força externa que o provocasse.
Antes de tudo, era refém de si próprio. Permitia sentir-se e não ficar imóvel diante das vírgulas de dor que surgia na sua mente e coração. Por isso, o consideravam estranho. Sentir era um pecado. Permiti-se sentir, uma vergonha.
A maior lei daquele universo consistia em simplesmente ignorar quaisquer sentimentos como se fosse um vírus de uma doença rara possível de se ver a olho nu. Ao começar, deveria tratar a doença do sentimento imediatamente com todas as armas possíveis.
Dava aos sentimentos a razão. Porque sentir quando você pode cancelar imediatamente isso e pular para o caminho mais fácil? Se nascestes menino, como poderia desejar sentir? Sentir era coisa de mulher.
Ali naquele rio, parado olhando o sol, não conseguiu perceber o quanto sentia-se só. Sentia. Mas a solidão já não era uma inimiga. Havia se tornado o seu maior aliado, feito um cão a um homem. Com o tempo, ensinou truques a seu próprio ser e pôde brincar com a solidão.
Brincou por bastante tempo. Era um menino. Não corria atrás de bola ou de rir falsamente. Brincou de olhar os outros. Via a tristeza de quem mais o criticara. Escondido talvez, na razão das coisas que se eram obrigados a se fazer.
Levanta de manhã, atrasado. Deita a noite, atrasado. O tempo estava negativo. Com isso, os bolsos enchiam, mas nunca o suficiente para comprar tempo. O dinheiro do homem, assustadoramente, não o fazia se sentir rico.
Enquanto os homens possuíam, o menino precisava. Precisava de uma conversa sobre as coisas que ficam para trás. Sobre as coisas que ficarão para o futuro. Sobre as coisas que sentíamos todos nós. Por um momento, se sentiu pobre.
O sol nascia e morria esperando sua ressurreição de amanhã. O garoto ainda estava ali. Parecia imóvel. Sentiu tanto que obrigou-se a mergulhar. As águas tomaram sua cabeça e seu corpo se aliviou.
Nadando em direção ao leito do rio, deixou nas águas, as dúvidas. Sabia que elas nunca teriam fim. A nascente de todas as dúvidas era a própria vida. Enquanto ela persistisse em existir, dúvidas seriam renovadas.
Sabia que um dia seu corpo já não teria aquele brilho da juventude. Não iria brincar com o sol para ver qual brilho era maior. Mas iria brincar enquanto vivesse. Brincaria de sentir as águas de todos os rios que existissem. Hora deixando seu corpo se guiar, hora tomando as rédeas. Nunca naufragando.
Esse conto foi escrito por Lucas Pimentel para o Contos Iradex.
Para reprodução ou qualquer assunto de copyright a autora e o blog deverão ser consultados.