Uma Nova Vida: O Ataque | Iradex

Uma Nova Vida: O Ataque

André queria apenas defender uma causa que achava justa. Mas encontrou outra coisa no caminho.

Uma Nova Vida é um conto escrito por Amauri Vargas, ilustrado por JP Martins e distribuído em primeira mão aqui no Contos Iradex. Embarque na primeira parte nessa leitura.

Se quiser uma imersão durante a leitura, coloque os fones e ouça “Metamorphosis One”, de Philip Glass.


Uma Nova Vida: O Ataque

“O país tá se desfazendo e eu não vou fazer nada?”, perguntou André de forma retórica, antes de completar um “me perdoa meu amor, mas eu não posso ficar de braços cruzados enquanto os meninos enfrentam um cordão de isolamento cheio de PMs. Eu vou lá e quando terminar, te ligo”, click.

O homem do outro lado da linha não teve tempo sequer de protestar. Ou mesmo de dizer que o amava.

Chovia muito naquela semana, mas exatamente na quarta-feira o sol começava a secar o chão desde a primeira hora da manhã. Faltavam dois dias para o inverno que, supostamente, deveria ser de clima seco. Giovani, ainda encarando o próprio celular numa das mãos, pediu em pensamento que caísse mais chuva. Ao menos chuva o suficiente para que os protestos contra o aumento da tarifa de ônibus fossem suspensos. Acontece que já não podia fazer nada, o sinal que mandava os alunos de volta bateu um minuto antes e uns 50 adolescentes estavam prestes a romper a sala para a aula de francês.

Nem um deuxieme¹, no entanto, pôde ser ensinado com 100% de sua concentração, enquanto repassava com as garotas e garotos a lista de números ordinários no idioma europeu. Na realidade sua cabeça estava no centro da cidade, onde estudantes universitários e policiais se digladiavam todos os dias desde o último domingo – não importava se com chuva ou sem – após o anúncio do prefeito sobre o valor das passagens.

O medo do professor na escola da zona sul dava lugar à tensão e raiva que sentiam as pessoas nos lados opostos do cordão, feito pelas tropas da polícia militar. Era notório que dali nada de bom sairia. No dia anterior um estudante foi hospitalizado com as costelas quebradas. Um policial, no início da semana, havia sido internado com um sério trauma no fêmur, vítima de uma rajada de enormes pedras atiradas por pessoas mascaradas. Um mês antes um cinegrafista de televisão foi assassinado pelo rojão de um dos manifestantes que, acovardado, mantinha-se foragido enquanto era procurado pelas autoridades locais.

É claro, claro, que dali nada de bom poderia sair.

Ninguém jamais estará preparado para o confronto. Para apanhar ou para bater, acredite.

Quando um grupo de cinco encapuzados irrompeu sobre uma das frentes, um dos policiais se destacou do bando fardado e alcançou o rapaz de olhos verdes, cabelos longos e pele bronzeada, com forte traço árabe. Ele foi ferozmente atingido pelo cassetete. Os policiais avançaram de forma descoordenada sobre os homens descamisados e, apesar daquele caos, tudo foi captado pelas lentes de uma emissora que transmitia tudo ao vivo, justamente no momento do motim.

O bastão preto de aparência macia, revestido de borracha, mas construído em madeira, se lascou ao encontrar o nariz de André, tamanha a força aplicada sobre sua face. O bastão o atingiu uma única vez e foi o bastante para que a maioria dos ossos da face, incluindo o avantajado nariz, se quebrassem.

A emissora começou a rodar aquilo em looping, depois que um esperto editor na redação percebeu o golpe, aplicado de forma fulminante. As imagens eram claras, frame a frame, o rapaz foi ao chão e o policial, assim como quem sente um medo repentino, teve os músculos das pernas retesados, o que o impedia de correr.

Paralisado, ele apenas observou o homem no chão.

Em coma, a vítima foi levada ao hospital, apenas três quilômetros distante dali.

¹ “Segundo” em francês. (N. do A.)

Parte 02 - A Morte


Esse conto foi escrito por Amauri Vargas e ilustrado por JP Martins para o Contos Iradex.
Para reprodução ou qualquer assunto de copyright a autora e o blog deverão ser consultados.


Sobre o autor: Amauri Vargas é jornalista, fala mais do que deveria e bebe menos do que gostaria. Pai de duas gatas, marido de um romântico e filho de um herói, sempre escreveu ficção que ninguém lia. Até agora.
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