Thayná,
Por muito tempo na minha vida eu achei que uma das coisas mais importantes de viajar era aprender a voltar. Eu não me lembro da primeira vez que viajei. Meus pais gostavam de viajar e tenho fotos, ainda bebe, em vários lugares. Águas de Lindóia, Serra Negra, São Roque, Pirapora do Bom Jesus, até para o Rio de Janeiro já fui de trem, numa época que existia trem de passageiros entre Rio e São Paulo. Mas eu não me lembro de nada disso, são apenas fotos velhas onde aparece uma menininha que, dizem, era eu.
A primeira viagem de que me lembro foi para Santos. Como você deve saber, Santos é a praia da Pauliceia. No fim do ano, quando acabam as provas da molecada e a cidade se prepara para o Natal, milhares de famílias paulistanas migram para a ilha de São Vicente. Eu nunca gostei de praia. Primeiro aquela areia que gruda pelo corpo salgado da água do mar e que entrava pela calcinha do biquíni e arranhava as partes mais sensíveis. O próprio mar nunca foi muito convidativo para mim e jamais me aventurei a nadar além da arrebentação. Sou corajosa para muitas coisas, mas tenho medo do mar. E por fim, enfrentar aquele sol ardendo na pele, numa época em que protetor solar era ficção científica. Mas com tudo isso, a aproximação do fim das férias e a subida da serra sempre me davam uma sensação ruim. O motivo, óbvio, era que tempos de férias eram melhores que tempos de aulas. E pronto.
Já no começo da adolescência me lembro de um ano em que o retorno foi particularmente difícil. Naquela época já eram mais evidentes os encantos de Santos. Nós ficávamos na praia do Zé Menino, que não era a badalada Gonzaga, mas já era no município de Santos, separada por um canal da Praia Grande, a prima pobre, que olhávamos com certo ar de superioridade, julgando a farofa alheia como os chiques do Guarujá julgavam a nossa. Não sei se ainda hoje é assim, mas tanto no litoral de São Paulo como no Rio de Janeiro, as praias tinham separações invisíveis entre classes sociais e tribos diversas.
A cidade de Santos não é particularmente bela, mas tem seu charme. Apesar da areia escura e pouco convidativa, os jardins que acompanham a orla são muito bonitos e tem vários pontos para tomar um sorvete, uma cerveja ou uma água de coco. Mas o que eu acho especial na cidade é ela ter muitas obras de arte urbana, fontes, monumentos e museus que contam histórias interessantes como a da guerra entre os Tupiniquins, habitantes da ilha de São Vicente contra os Tupinambás, da ilha de Santo Amaro, canibais e orgulhosos , grandes guerreiros e os primeiros a serem dizimados pela aliança entre seus desafetos com os portugueses e suas armas de fogo. E tem a história dos imigrantes, que agora chamam de refugiados, que também é a história da minha família, dos que chegaram do outro lado do Atlântico e passaram pelo porto antes de subir a serra do mar com destino incerto. Santos viu a chegada de gente de todo lugar, aqueles livres e esperançosos fugindo da fome, da guerra e da pobreza, ou daqueles que pisaram por lá nas piores condições que um ser humano pode enfrentar, escravizados e torturados. Por tudo isso, se você for a Santos um dia, não se restrinja a praia dos paulistas, ao aquário e a biquinha do Tororó. Aproveite para aprender ou reaprender um pouco da nossa história.
Mas voltando as voltas. Naquele ano, pra mim, Santos foi a liberdade que eu não tinha em São Paulo, foi conhecer pessoas novas e me enturmar (que palavra precisa). Foi conhecer o primeiro namorado, numa paixão eterna de uns quatro dias, porque como todos os paulistas sabem: “amor de férias não sobe a serra”.
Foi no meio dos meus exageros da adolescência que pela primeira vez pensei na injustiça de ter que voltar. Naquela época, muito mais do que hoje, despedidas eram mais definitivas. As distancias eram muito maiores, mesmo que fosse entre a Mooca e Pirituba ou entre o Itaim e a Freguesia do Ó. No ano seguinte seria outra fase na escola, a casa que usávamos na praia seria vendida, a situação familiar estava complicada. No dia de voltar chorei. Fiquei arrasada, lembro até hoje do sentimento de impotência frente ao maldito e incontrolável tempo que nos governa. Pronto, acabaram as férias.
Durante muitos anos, muitas das minhas viagens terminavam dolorosamente. Em vários níveis de suplicio, dependendo do que eu achava que estava deixando para trás. Partir de algumas terras é doloroso. Partir de algumas pessoas é atroz. A dúvida sobre voltar ou ficar, mesmo que no campo dos sonhos, aparecia e era aflitiva.
Hoje considero que encontros e despedidas não começam e acabam naquele tempo que ficamos num determinado local. Existem encontros que se repetem. Existem pessoas que permanecem. Existem pessoas que perdemos. Existem lugares que desaparecem. Existem lugares que reencontramos.
São Paulo, Santos e todos os lugares que estou, estive ou estarei são parte da minha única viagem. Quando eu aceitei isso percebi que ir, voltar ou ficar são parte de um único destino.
Cartas ao Mundo é uma série especial, escrita por Adah Conti sobre suas viagens.
O destinatário costumava ser apenas seu filho, Felipe, mas agora somos todos nós. Conheça o mundo pelas palavras de Adah.