Emilia,
Sabe aqueles momentos de filosofar sobre a vida? Provavelmente, a gente tem os melhores na infância, mas não lembramos. Depois aqueles da adolescência, entre uma crise e outra. Adultos, cada vez menos paramos para pensar “no que importa”. A vida vai seguindo seu rumo e inocentemente achamos que temos controle sobre ela. As viagens para mim são mais que um momento de descanso, mais do que conhecer lugares, mais até do que conhecer pessoas e culturas. Viajar para mim é sobre o quem eu sou.
Quando fui para o Alaska, depois de várias horas encalacrada na cadeira do avião, resolvi dar aquela levantadinha básica e andar até o finalzinho do corredor, perto das cadeiras dos comissários. Foi quando uma janelinha me atraiu e resolvi dar uma espiada lá em baixo. Já tinha amanhecido e me vi voando sobre aquele mar de montanhas brancas. Minha primeira epifania nessa viagem foi perceber como, sendo pessoas do nosso próprio tempo, não temos mais algumas emoções que matariam de medo, excitação ou felicidade nossos ancestrais. Voar sobre as montanhas é um privilégio tão grande que me cobrei o devido deslumbramento por poder ver aquela paisagem daquele jeito. Quantos puderam? Veio uma vontade de gritar aquilo para os meus companheiros de voo, uns dormindo, outros sem disfarçar o tedio. Não gritei.
Nesta mesma viagem, numa cidadezinha chamada Talkeetna, perdida no meio do nada, onde a única rua era ladeada pela floresta que só sabíamos habitada pela presença de umas trilhazinhas quase invisíveis não fosse pela caixa de correio, tive outro presente da sorte. Estávamos lá por ser uma dormida mais perto do parque nacional de Denali, que iriamos visitar no dia seguinte. Explorando a pé o lugar, numa paisagem de filme de terror adolescente, com direito a cabana isolada e lago no lusco-fusco ( já que não anoitece no verão do Norte) vimos uma segunda rua que chegando mais perto constatamos ser uma pista de pouso. Por aquelas bandas, aviõezinhos são meio de transporte rotineiro.
A ideia veio imediatamente. Precisamos voar até o monte MacKinley, conhecida por ser a montanha mais alta da América do Norte. Ainda sem saber bem como conseguiríamos um modo de chegar lá em cima, encontramos um piloto sentado no único bar da cidade e trocamos umas poucas palavras, como é comum por ali. O Alaska não é lugar de pessoas que gostem de muita conversa.
- Wanna fly?
- Ya, dude! Please!
E no dia seguinte, com o tempo meio instável, assim como nossas emoções, fomos decolar num aviãozinho vermelho monomotor que o piloto tratava da mesma forma que alguns manos da periferia brazuca tratam seus carros velhos. Veja bem, chamo o cara de piloto porque nunca fomos apropriadamente apresentados. Para mim é Larry, mas não sei de onde tirei isso. Acho que ele tinha cara de Larry. Naquela terra fria, toda vila tem uma lojinha, um bar, uma igreja protestante e uma pista. E todo mundo pilota. Decolamos, passamos por cima das florestas e após ouvir um barulho do tipo tchec , tchec notamos que Larry baixou uns esquis por baixo das rodas e por gestos nos avisou que ia fazer um pouso na montanha.
Na verdade num glaciar nas montanhas. Um lugar absolutamente silencioso. Poucos pássaros conseguem chegar por ali. Mamíferos, bípedes e falantes muito menos. Eu me senti completamente estranha. Lembro vagamente de ter pensado em questões filosóficas. Não sei ao certo se obtive pelo menos algumas respostas. Às vezes acho que sim. Mas a consciência delas me foge rapidamente.
Os alpinistas dizem que escalam montanhas pelo simples motivo delas existirem.
Eu cheguei na montanha não com esforço físico e mental próprio, mas levada pelo esforço da minha espécie, tão falha e mesquinha, mas que construiu uma maquina de voar. E descobri que a montanha marca e modifica quem a encara. Mas não descobri o porquê.
Cartas ao Mundo é uma série especial, escrita por Adah Conti sobre suas viagens.
O destinatário costumava ser apenas seu filho, Felipe, mas agora somos todos nós. Conheça o mundo pelas palavras de Adah.