- Boa noite. Aqui é o Augusto, do Edifício Itália. Quero duas da de sempre. Sem azeitonas! Obrigado.
Glutão é um conto escrito por Gusta Mociaro e distribuído em primeira mão aqui no Contos Iradex. Embarque nessa leitura.
Glutão
A face corada de Juliana tornou-se pálida e fria assim que girou a maçaneta e empurrou com força a porta do apartamento. O carpete amarelo e áspero agora possuía uma grande mancha marrom, cercada de respingos e restos de carne podre.
As janelas de vidro estavam todas fechadas, porém não impediam a entrada do sol, que naquela hora já estava prestes a se esconder atrás dos prédios infinitos do horizonte. O ambiente era estático, com exceção do pulsar ritmado e frenético dos vermes que brotavam daquele amontoado de pele e banha que repousava bem no centro da sala, caído aos pés da mesa de jantar.
Cambaleante, Juliana é vencida pelo estômago, bate a porta, vira-se, e lava a parede hall com o cappuccino, agora azedo, que bebeu minutos atrás enquanto esperava o táxi no aeroporto.
Aurora, a vizinha do 402, chega bem a tempo de presenciar a última gorfada. Apesar de morar ali há anos, ela ainda não se acostumara com as bizarrices daquela família. A senhora ensaia um sinal da cruz e corre para seu apartamento tentando encontrar a chave no meio da enorme bolsa de couro lilás. Sua voz quase inaudível, típica de alguém com aquela idade, recita trechos de uma oração qualquer.
Do rosto de Juliana pingavam lágrimas e o azedume fétido que abandonou seu estômago. Os tons quentes começavam a colorir novamente a sua pele. Quando as pernas param de tremer ela decide que chegou a hora de voltar pro seu pesadelo particular e encarar o terror. Abre novamente a porta e aquilo, que um dia fora seu pai, continua no chão pulsando e alimentando os parasitas famintos.
Augusto já tinha passado dos 60. Viúvo, criou a filha sozinho. E sozinho ficou quando ela entrou pra faculdade. Era um típico glutão. Raramente saia de casa e pedia tudo que podia por telefone ou internet. Não tinha com quem reclamar das mazelas da vida, então descontava sua tristeza em fatias de pizza de frango, sem azeitonas.
Juliana chora enquanto observa atônita.
Aquele que tanto devorava, agora está sendo devorado. Augusto não está mais só. Agora ele é muitos, e podem continuar comendo a vontade tudo aquilo que já comeu outrora.
Esse conto foi escrito por Gusta Mociaro para o Contos Iradex. Para reprodução ou qualquer assunto de copyright o autor e o blog deverão ser consultados.
Escritor? Nem de longe. Mas um grande fã de boas histórias.