Desorientado, Vinicius tenta entender onde está, como foi para lá, e qual a razão disso tudo. A lamparina e o chá podem trazer respostas.
A Lamparina e o Chá é um conto escrito por Vinicius Caldas, distribuído aqui no Contos Iradex.
A Lamparina e o Chá
-Que lugar é esse? -Perguntou-se desorientado e com os sentidos abalados. Não se lembrava de quem era e nem como havia chegado àquele lugar confuso e cheio de pó. A rinite logo atacou.
-Você está morto. - Soou uma voz rouca vinda de trás de uma pilha de livros. Era um senhor de idade com uma lamparina acesa iluminando o caminho até Vinicius.
-Morto? – Indagou com cara de espanto.
-Sim.
-Ei, espera ai! Isso é impossível!
-Morto.
-Estou aqui, estou sentindo o calor de sua lamparina e o cheiro dos livros velhos que estão por toda parte!
-Morto.
- Me responda! Estou até com a minha alergia atacada de tanta poeira que tem aqui. Diga-me, onde eu realmente estou?
-Está morto. - Disse o velho dando as costas para Vinicius e voltando para as sombras de onde tinha vindo.
Durante algumas horas as palavras do velho ecoaram na cabeça de Vinicius. Não acreditava que estava morto. Não aceitava esse fato. Tentou se lembrar de onde estava antes de ir àquele lugar confuso. Não se lembrou. Decidiu então que tudo aquilo não passava de um sonho e logo ia acordar...
Mas ainda havia uma sensação de desconforto em seu anterior. Como uma angústia. Um nó na garganta. Seguiu o caminho de onde o velho tinha vindo.
Não foi fácil chegar ao seu objetivo. A alergia e a falta de luz fizeram com que o caminho se tornasse muito mais árduo do que imaginara. Conforme avançava no caminho escuro, as sombras o abraçavam e o faziam lembrar-se de sua vida. A vida que traçou com vontade e curiosidade assim como traçava aquele caminho.
Lampejos de seus últimos momentos no plano terrestre inundaram sua mente e seus pulmões. O gosto da água doce com barro tomou o seu paladar e o ar se foi.
Lembrou-se da sua trágica morte: um dia normal de verão em Minas Gerais, uma represa com águas negras e uma tarde de pescaria. O que era para ser um momento de lazer acabou com sua vida. Estava afogado.
Quando voltou de suas últimas lembranças, estava deitado. Coberto por uma manta que o aquecia e com uma toalha em sua testa. Observou ao seu redor e notou que duas figuras o cercavam. O velho da lamparina e uma senhora que tinha mãos cuidadosas e confortáveis:
-Já acordou garoto? - O velho disse de uma forma grosseira.
-Onde... onde eu estou? -Disse Vinicius ainda abalado.
-Já disse mais de dez vezes! Você está morto! M-o-r-t-o! - Soletrou o velhote raivoso.
-Meu bem, não o trate assim. Ele chegou aqui faz só cinquenta anos...
-50? Não. Não! Isso é impossível! - Vinicius se levantou da cama improvisada.
-Sim querido. Não se assuste. Logo vai entender tudo o que está acontecendo. Apenas tome isso e descanse. - A bondosa senhora entregou uma xícara de chá quente para o rapaz assustado, que adormeceu logo em seguida.
Quando acordou ainda não estava acostumado com a passagem de tempo do lugar, mas já se sentia muito melhor do que antes. Levantou-se e foi à procura do casal de senhores que o recebeu. Andou por alguns minutos e viu o velho rabugento sentado em frente a uma mesa de xadrez:
-Garoto, se aproxime. Sabe jogar xadrez?
-Sei sim, senhor.
-Vamos jogar então. Faz muito tempo que não jogo com ninguém além da minha amada véia.
-Tudo bem, eu jogo com você. Mas se você perder terá que me dar respostas de onde estou e que lugar é esse. -Vinicius puxou o banco e se ajeitou para a partida.
-Hah! Como você quiser, garoto. -Disse o velhote com um sorriso no canto da boca.
Jogaram por um bom tempo. O rapaz não conseguiu ganhar nenhuma vez. O velho dominava muitas estratégias daquele jogo. Parecia que ele mesmo tinha inventado o xadrez:
-Ok, eu desisto. Parece que não vai adiantar eu insistir nisso. Não vou chegar a lugar algum jogando xadrez com você. Nem sou tão bom assim nisso...
-Não mesmo. Parece que você está começando a entender. - O velho disse em um tom sério.
-Entender o que? Que não sirvo para jogar xadrez? Não precisava de muito esforço para descobrir isso. - O rapaz estava furioso por não obter respostas.
-Não garoto. Entender que não adianta insistir numa coisa que não te levará a lugar algum. O que você fazia antes de se afogar?
-Bom, pelo que eu me lembro, eu trabalhava numa empresa de administração e nos finais de semana saia com os meus amigos para beber. Não me lembro de mais nada agora.
-Faz sentido. Então já estava morto antes de se afogar... - o velho estava com um semblante de tristeza.
-Não, está louco? Não estava morto, morri afogado!
-Não vou discutir com você. Vou ali tomar um chá e chamar a véia pra falar co’cê. Eu desisto. Se quiser, vá ler uma desses livros aí pra passar o tempo da sua eternidade nesse lugar.
O velho se afastou lentamente com sua lamparina e Vinicius ficou sozinho por alguns momentos. Resolveu seguir o conselho do velho e ler um daqueles milhares de livros que estavam disponíveis e sujos de pó. Pegou um deles, limpou com a mão de eu uns assopros para tirar as camadas de sujeira e algumas teias de aranha.
Abriu e começou a ler. Leu duas, três páginas, mas quando foi para a quarta, ela estava em branco. Assim como todo o resto do livro. Achou estranho e pegou outro livro para ler. Era a mesma coisa. Algumas páginas escritas e o resto em branco. Uns livros nem tinham nada escrito, apenas páginas e mais páginas de folhas em branco. Até que uma voz amigável rompeu o silêncio da leitura desorganizada:
-Está surpreso? - A senhora vinha lentamente com um sorriso simpático no rosto.
-Sim, estou surpreso e espantado. Por qual motivo duas pessoas da idade de vocês têm tantos livros guardados sendo que a maioria deles estão incompletos ou totalmente em branco? - Questionou o rapaz indignado segurando os livros abertos na mesa de xadrez.
-Não notou alguma familiaridade nas poucas palavras que encontrou descrita nos livros?
-Agora que a senhora disse eu reparei, mas não consigo me lembrar de onde...
-Faça um esforço... pegue esse livro que está na sua frente, o de capa vermelha, leia o título para mim.
-“As Crônicas dos Ingredientes”... espere... esse livro, esse livro... Ele é meu! Fui eu que escrevi!
-Não querido... você não terminou de escrevê-lo. Assim como todos esses outros milhares de montanhas de livros que estão espalhados por esse salão. Estamos no fundo da sua consciência. No centro da sua alma, onde muitas ideias foram despertadas, mas não executadas como você realmente queria. – Dizia a senhora enquanto apalpava carinhosamente o rosto de Vinicius.
-Mas eu não estou morto? Não morri afogado? Se essa é parte de minha mente, então quer dizer que ainda posso estar vivo! - os olhos do rapaz se encheram de alegria.
-Não, você não morreu afogado, mas já estava morto antes de se afogar. Olhe a sua volta. Acha que isso é a alma de quem está vivo? Sinceramente, o que você estava fazendo com a sua vida? Estava vivendo ou só sobrevivendo? - O velho havia voltado com sua lamparina que iluminava o rosto de espanto de Vinicius.
-Eu sempre quis, mas não tive coragem... optei pelo caminho mais seguro, o caminho mais...
-Mais escuro e cheio de assombrações como o caminho que você fez para chegar até nós. -Interrompeu a senhora.
-Você realmente se afogou. Nesse momento você está em coma. Fazem 5 anos que você está numa cama de hospital sobrevivendo apenas com aparelhos. -Disse o velho agora se colocando ao lado de sua esposa.
-Mas como saio daqui? Digam-me, por favor! - o jovem estava desesperado.
-Antes de você acordar precisa nos fazer uma promessa. -Disseram o casal numa única voz.
-Sim, qualquer coisa! Quero voltar a viver!
-É isso. Você deve voltar a viver. Mas não como antes, deve voltar realmente a viver. Deve ascender sua alma, despertar sua centelha. Cumprir sua verdadeira vontade. Deve explorar universos. Deve criar seus próprios universos. Fazer o que você nasceu para fazer: Escrever. -Soaram juntos
-Eu prometo! Escrever!
No instante que Vinicius proferiu essas palavras as chamas da lamparina do velho se alastraram por toda a consciência do rapaz, incendiando todo o espaço e todos os livros velhos dando espaço aos universos de cores, terror, fantasia e misticismo que sempre circundavam aquela mente. A centelha da vontade havia novamente acendido, as chamas coloridas que incineraram o fundo de sua mente foram em direção ao seu peito, o aquecendo como se tomasse uma xicara de chá. Um clarão veio à tona e ao longe viu o casal de idosos sorrindo e acenando. Inspirou ar puro.
Encontrou sua mãe ao lado da cama e a abraçou dizendo, com lágrimas nos olhos:
-Me sinto vivo.
"Dedico esse conto ao velho da lamparina, por iluminar minha mente e a velha da xícara de chá, por manter minha centelha aquecida."
Esse conto foi escrito por Vinicius Caldas para o Contos Iradex. Para reprodução ou qualquer assunto de copyright o autor e o blog deverão ser consultados.