Como andam suas certezas? Você sabe dizer o que realmente está em jogo aqui? Consegue olhar para o seu coração e enxergar para além da superfície, além de suas crenças? Vale a pena manter uma situação apenas porque é aquilo que a maioria faria? As vezes as aparências enganam...
Margarina é um conto escrito por João Rodrigues Lima e distribuído em primeira mão aqui no Contos Iradex. Embarque nessa leitura.
Margarina
Juntou as migalhas de sua vida, espalhadas sobre o balcão do bar. As chaves de casa, os poucos cigarros amassados, umas moedas, sua dignidade. Da porta, olhou para a penumbra do estabelecimento, para dois ou três fregueses em situação de abandono moral. Sentiu simpatia por eles, e aquela cumplicidade que só a culpa consegue agregar.
Lá fora, a luz foi uma surpresa terrível. Amanhecera enquanto revisitava suas dúvidas, procurando respostas no fundo dos copos. Tomara algumas cervejas, uma ou outra tequila e uma frágil decisão.
Voltou caminhando, sua casa a umas poucas quadras dali. Tirou as chaves do fundo do bolso, e junto com o chaveiro, intrometida, veio a aliança. Um olho dourado, inquisidor, espreitando sua alma culpada enquanto refletia o brilho da manhã. Encararam-se por uma pequena eternidade. O anel voltou para o bolso.
Entrou com cautela, pé ante pé, perscrutando o silêncio da casa. Jogou os pertences na poltrona, a bolsa, o casaco, as certezas. Caminhou em direção a cozinha. Precisava de algo para afogar o desconforto súbito na boca do estomago. Achou que fosse a ressaca, mas eram suas angústias abrindo caminho garganta acima.
Estendeu a mão para a geladeira, mas interrompeu o movimento, como se o tempo estancasse o passar das coisas. Na porta de aço escovado, um pequeno ímã prendia dois fragmentos de realidade. Na foto, uma família.
Dia de sol, duas jovens mulheres bem-sucedidas, felizes, uma garotinha entre elas. Junto, um bilhete: “Linda, fui levar a Pequena na escolinha. Vou fazer o bolo, vc traz a margarina? Ass: Sua Loira ♥”
No bolso, a mão trêmula encontrou a aliança, mas não as certezas, que permaneciam, todas, jogadas na sala de estar...
Esse conto foi escrito por João Rodrigues Lima para o Contos Iradex. Para reprodução ou qualquer assunto de copyright o autor e o blog deverão ser consultados.