Felipe,
Dizem que o mundo é redondo e não tem fim. A verdade é que o mundo acaba em alguns lugares. Hoje eu cheguei a um deles. Quem me trouxe aqui foi uma pessoa cujo nome eu não consigo pronunciar. A língua Inupiati é misteriosa para mim, tem sons que minha boca se recusa a imitar. Soa como algo alienígena, cheia de estalos. A língua dos ingleses é mais fácil e você sabe que este povo que vive aqui neste fim do mundo é também americano. O nome da pessoa que me trouxe até aqui é impronunciável na própria língua, mas também é Daniel.
Daniel conta que esse lugar, Nuvuk, já foi habitado por seus ancestrais e foi abandonado há duas gerações. Agora, apenas uns cientistas escavando pra lá e pra cá e uns poucos viajantes como eu e seu tio. Aqui é árido, nessa latitude as plantas não sobrevivem , nem a tundra que vimos pela janelinha do avião mais ao sul. Lembrei que na escola achava engraçado este nome: tundra. Você ainda vai ouvir falar dela, saiba que é só um matinho rasteiro. Como eles não tem árvores, alguma pessoa que já foi até o sul e voltou, fez uma escultura de uma, meio torta e não muito fidedigna, em um material que me parece bronze. Essa árvore metálica é a única coisa que se destaca no chão de terra e pedregulhos que vai até o mar.
O mar tem uma cor esverdeada e está forrado de pedras de gelo flutuantes do tamanho de carros. No meio delas, vejo um barquinho mínimo, com dois homens segurando uma espécie de lança. Eles saem para caçar focas ou outros animais que se caça por aqui, para alimentar pessoas e cachorros. Só de olhar esses intrépidos marinheiros, eu sinto medo. Você sabe que tenho medo do mar. E penso nesse povo, que nesses barquinhos minúsculos, uma vez por ano, saem para caçar uma baleia. A sobrevivência nos meses do inverno ainda depende do sucesso desta caça, que envolve todo o vilarejo.
PUM!!! Pulo de susto com o barulho do tiro. É Daniel, que tirou um rifle da caminhonete e atirou num pato. O bicho caiu pertinho e ele foi buscar. Lembra que eu te falei que eles são americanos? Pois então, eles têm caminhonetes e armas. Também tem televisão e computadores. A vida no século 21 para os Inupiatis é uma mistura estranha. Ele nos diz que o pato é para o jantar dos quatro filhos. Ele só tem 23 anos, mas aqui as pessoas casam e tem filhos cedo. E caçam para comer. Aqui não tem salada, nem brócolis, nem repolho. Não tem arroz, nem batata, nem macarrão. A comida é a carne dos animais. Usam o óleo dos bichos para acender lamparinas, mesmo que o governo forneça cabos de eletricidade. Eles ligam a televisão e o computador, mas preferem a luz das lamparinas. Mesmo nos longos meses do inverno quando luz é uma coisa rara por aqui.
Quero voltar caminhando, porém sou avisada que isso não é possível. Os ursos dos polos podem aparecer e atacar. Então voltamos à vila chaqualhando na caminhonete. É verão e as crianças brincam na praia do Ártico. Eu estou de casaco e elas de camiseta. Faz zero grau. O sol não vai se por hoje. Nós, que não somos deste lugar, nos sentimos estranhos e confusos, mas não é uma sensação ruim. É um lugar especial. Onde o mar e o vento tem um cheiro diferente. Onde as casas são simples, de madeira e não de gelo, como achamos na nossa ignorância sulista. Iglu realmente quer dizer casa na língua deles, mas aquilo que vemos nos desenhos é só um abrigo feito pelos caçadores. Tudo é diferente menos as crianças que brincam como em qualquer outro lugar.
Amanhã voltamos para Anchorege. Barrow é mais um lugar que ficará guardado comigo.
Terei saudades.
Cartas ao Mundo é uma série especial, escrita por Adah Conti durante suas viagens.
O destinatário costumava ser apenas seu filho, Felipe, mas agora somos todos nós. Conheça o mundo pelas palavras de Adah.