Finalmente li O Andarilho das Sombras até o ponto de fazer uma resenha segura. E aqui estou falando da obra de Eduardo Kasse que mistura muito bem o real e o sobrenatural em plena Idade Média.
"Das sombras ele surgiu, com sangue na face, malícia no olhar e a sede tão intensa quanto a eternidade... E para as sombras ele retornou... E num instante, apenas o vazio da escuridão" (trecho do início de O Andarilho das Sombras)
Quando Eduardo Kasse enviou-me O Andarilho das Sombras, mal sabia que estava colocando sua obra nas mãos de um ex-estudante de História ávido por ler Jacques LeGoff e outros grandes estudiosos dessa época. O que poderia ter se tornado o maior tiro no pé de Kasse, foi sem querer um grande acerto. O autor respeitou o assunto da forma como merece.
O Andarilho das Sombras é o primeiro volume da série Tempos de Sangue, publicado pela editora Draco. A história acompanha o personagem Harold Stonecross e os sacrifícios que alguém pode fazer a ponto de colocar sua alma em jogo. Tudo se passa na Idade Média em meio à sujeira, sombras, drama e sangue.
O ponto principal da trama é ótimo. Eduardo Kasse nos apresenta o personagem Harold Stonecross, tão forte em decisões quanto seu nome, e quebra seu personagem principal em outro tão interessante quanto. Explico. A trama do livro é contada a partir desse personagem e o acompanha desde sua infância até o momento em que se transforma em monstro. Em um momento estamos vendo tudo a partir dos olhos do Harold humano e em outro estamos na visão daquele monstro no qual o personagem se transformou. Todo o tempo somos levados a presente e passado, meio e começo, começo e fim.
A estrutura de escrita do autor não situa bem o leitor no tempo, pois trata-se de uma história nada linear, onde o ciclo natural de começo, meio e fim não é tão óbvio. O melhor? É em primeira pessoa. Como eu gosto de ver histórias a partir dos olhos de um sujeito só! Essa sensação limitada de visão impõe os conflitos mais saborosos de se ler em um personagem. Ora, se alguém nos mata pelas costas, é provável que nunca saibamos como aquilo aconteceu. Afinal, somos somente aquilo que enxergamos.
Kasse decidiu por nos colocar no dia-a-dia de Harold Stonecross. Atividades repetitivas, poucas passagens de tempo e micro-atividades diáras. Atitude corajosa, pois para alguns leitores a repetição não agrada. Por mais que inicialmente pensasse que iria enfadar ao ler tanto sobre o personagem, isso não aconteceu. Pelo contrário, por conta desse dia-a-dia, Stonecross passou da condição de personagem lido, para a de um amigo que passava por uma jornada complicada.
Somente um ponto da narrativa me incomodou. A morte, quando falamos em um contexto de Idade Média, é algo completamente normal. Morreram muitos e das formas mais bobas possíveis. Não é ideal gerar tanto drama por algumas mortes até certo ponto banais. Fui deslocado em alguns momentos do clima inebriante da história.
A capa do livro, e não só desse por sinal, está na linha das capas que a editora Leya tem preparado para As Crônica de Gelo e Fogo (George Martin) no Brasil. Isso causa um desconforto inicial por fazer pensar que vamos ser levados a uma aventura parecida ou fortemente inspirada. Eduardo Kasse até narra em primeira pessoa de forma bem parecida com George Martin, mas a história é completamente diferente. Inclusive sua abordagem, a qual se aproxima quase sem propósito muito mais de Bernard Cornwell do que propriamente George Martin.
O Andarilho das Sombras é pleno ao abordar a Idade Média, porém seu grande trunfo está na coragem e criatividade do autor em sempre levar seu personagem principal a conflitos cada vez mais crescentes em termos de dificuldade. Harold Stonecross é um personagem de força extrema e leva o livro para o mesmo patamar. Normalidade não condiz.