Miniconto: 1002 noites | Iradex

Miniconto: 1002 noites

Abriu os olhos. Chovia.

Levantou-se da cama com dificuldade por causa da perna que faltava. Sempre esquecia desse detalhe. Pegando as muletas ao lado do criado-mudo, olhou ao redor para certificar-se de que somente ele estava acordado.

Assim como em todas as outras noites, o dormitório estaria em completo silêncio, não fosse a respiração dos outros ocupantes. O leve ressonar de cada um se juntava para formar um único som, quase como se ali houvesse apenas um moribundo, e não dez.

Manquitolando pelo estreito corredor, ele foi passando por cada uma das camas, recitando para si mesmo o nome de cada um de seus companheiros agora no mundo dos sonhos. Como ele queria poder voltar a dormir! Mas não podia. Hoje era o dia. Hoje daria certo!

Já sabendo que iria esbarrar na pequena mesa no meio do dormitório, preparou-se para segurar a jarra de água antes que esta caísse no chão. Nem queria lembrar da ocasião em que a derrubou e o mundo veio abaixo.

Mais alguns passos e estaria no fim do corredor. Mesmo esses poucos passos foram suficientes para os flashes voltarem à sua mente. A guerra, sempre ela. Viu novamente as batalhas que ganhou, os amigos que perdeu. Sentiu no fundo de sua alma o desespero de se sentir morto. E era sempre nesse momento que sua perna reclamava. A perna que não estava mais lá. A perna que uma mina mandou pelos ares. Como coçava!

Pronto. Chegara. A visão da pequena sala que marcava o fim do corredor o retirou de seus soturnos pensamentos. Até conseguiu esquecer um pouco o incomodo na perna fantasma. Era hora de ir embora dali.

Pobre Larry. O segurança do turno da noite, não teve tempo nem de terminar o espantado cumprimento a ele. Um golpe certeiro da muleta na traqueia. Espamos. Agonia. Mesmo sabendo que ninguém ouvira nada, ele olhou de um lado para outro só pra ter certeza. Tirou o revólver do coldre do agonizante e trancou-se dentro da pequena sala.

Olhou para suas mãos. Firmes como a de um maldito cirurgião. “Dessa vez... dessa vez eu consigo”, foi o que pensou antes de posicionar o cano da arma na boca e puxar o gatilho.

Ele não conseguiu ouvir o ecoar do tiro pelos corredores. Não sentiu os miolos espalharem-se pela parede. Não ouviu nada. Não sentiu nada. Apenas o vazio. O silêncio.

E então...

Abriu os olhos. Chovia.