O Morro | Iradex

O Morro

Existe um mundo que acontece todo dia. Um mundo que nunca vemos ou tocamos. Um mundo do qual só ouvimos falar. Nesse mundo, o nosso atípico se faz rotina. O nosso bem é protegido pelo mal. Por um preço...

O Morro é um conto escrito por AJ Oliveira e distribuído em primeira mão aqui no Contos Iradex. Embarque nessa leitura.


O MORRO

A cada virada de maçaneta eu saía de um lugar estranho para outro. Meus móveis demoravam até a me chamar de “você”, mas não tanto quanto os vizinhos, que me olhavam com pena desde a noite passada, quando as chaves da casa me foram estregues.

Antes de sair, encaixei o chinelo entre os dedos. Meus sapatos agradeceram, pois não seriam esfregados a noite inteira devido o carpete de barro que a comunidade chamava de rua.

Foi então que subi o morro.

As crianças visíveis chutavam bolas, as invisíveis chutavam balas. Na verdade, eram capsulas vazias no caminho dos que garantiam nossa segurança com um fuzil na mão.

Eu não sou ninguém pra julgar, mas sou alguém pra subir. E foi o que fiz.

Quanto mais você avança na subida do morro, mais olhares você atrai. Dei por mim com uma escolta de meia dúzia, e a partir dali não teria mais volta. Estava nervosa – quem não ficaria? – pois, naquela comunidade em questão, todas as mulheres devem se apresentar diretamente ao Gilmar, “O Loko”, dono da bocada e, segundo as más línguas, “O cara do Oxi” para diversas regiões do RJ. Peixe grande, ou seja, perigoso até pros que sabem nadar.

Minha mãe dizia que eu me envolvia em tanta enrascada que acabaria casada com traficante, e assim me dar bem na vida. Se ela me visse agora apostaria nisso com todas as fichas, principalmente depois de eu chegar à casa do tal loko, e após duas fortes batidas na porta de um dos “escoltas”, ouvir um “É a marmita nova?”.

E pronto. Independente da situação, essas não são palavras que uma mulher esteja preparada pra ouvir, em momento algum.

Às vezes, o perigo é inevitável. Às vezes, nos trás recompensas. Eu tinha certeza de que não seria a primeira vítima do ser nojento ao outro lado da porta. Sabia que aquele seria, assim como foi o de tantas, o passe para conviver naquele grupo de pessoas.

Recompensas.

Desde o inicio, foi a palavra que me guiou. Sabia que nada viria fácil. Foi então que me entreguei aos meus instintos, e assim que a porta abriu, uma pergunta:

- O que é isso? – gritou o Loko, os olhos fixos nos cilindros apontados contra sua testa, erguidos pela minha escolta.

- Isso é o fim da linha Gilmar, você tá preso! – respondi, com acidez nas palavras – Homens! Algemem-no!

Da porta pra fora o perigo se move como a poeira do carpete carente de asfalto, ou como os moradores da comunidade costumam chamar, rua.


Esse conto foi escrito por AJ Oliveira para o Contos Iradex. Para reprodução ou qualquer assunto de copyright o autor e o blog deverão ser consultados.


Sobre o autor: AJ Oliveira é um leitor da filosofia de banheiro público. Aspirante a escritor e podcaster nas horas vagas.
Sobre o projeto: Contos Iradex é uma iniciativa daqui do site de colocar textos, contos, minicontos ou até livros mais curtos para a apreciação de vocês, leitores. Emendaremos algumas sequências com materiais da própria equipe e, em seguida, precisaremos de vocês para mais publicações. Se você tiver uma ideia de projeto, envie um e-mail para contos@iradex.net.