Salada Mista | Iradex

Salada Mista

Há quem goste de jogar por causa do poder. Há quem goste de vencer sempre. Não era o caso do menino. O que o atraía no jogo era o jogo.

Salada Mista é um conto escrito por Priscila Urano e distribuído aqui no Contos Iradex. Embarque nessa leitura.


SALADA MISTA

Era uma vez um menino bonito que gostava de vídeo game. Na verdade, ele gostava de quase todo tipo de jogo. Seus olhinhos infantis brilhavam nas disputas de Banco Imobiliário e nem piscavam nos lances de dados do War. Logo, tornou-se um exímio jogador. Os amigos sempre o queriam em suas equipes. Exercia uma liderança natural nas brincadeiras e, mesmo com sua cabeça de criança, era um estrategista nato. O nome desse menino era André.

Na exata medida em que foi crescendo, foi percebendo o que o atraía tanto nos jogos. Há quem goste de jogar por causa do poder. Há quem goste de vencer sempre. Não era o caso do menino. O que o atraía no jogo era o jogo. Era conhecer as regras e manipulá-las a seu favor. Era mexer com as pessoas, era usar o potencial de cada um para conseguir o seu objetivo. Enfim, André nasceu político.

Ele nunca deixou de jogar. Mas, no começo da adolescência, como um super-herói que aprende a voar, descobriu que poderia usar os seus poderes para atividades muito mais complexas do que joguinhos de tabuleiro. André descobriu que se relacionar com o sexo oposto é o jogo mais complicado de todos. Por isso mesmo, ele adorou a brincadeira.

As meninas tinham regras demais: pagar a conta, reparar no cabelo, nunca chamar de gorda, telefonar no dia seguinte, ter pegada. Percebeu logo que a maioria dessas regras sequer funcionava. Os outros garotos não entendiam, ele achava que aquilo tornava o jogo mais dinâmico e sedutor. Observou, traçou estratégias, organizou seus exércitos.

Tinha a seu favor o fato de que não era feio, aliás, podia se considerar um carinha bem bonito até. Ele sempre foi bom em fazer julgamentos e a humildade nesse momento não lhe seria favorável. Pelo que já entendia das mulheres, humildade era uma das coisas que não funcionava. Em compensação, autoconfiança era um ótimo trunfo. Assim como a educação, o sorriso e a sensibilidade.

Por tudo isso, no auge de seus catorze anos, André estava pronto para entrar no mundo das meninas pela porta da frente. Estava pronto para fazer conquistas no território do amor. Estava pronto para se tornar o novo galã do colégio.

Estaria tudo ótimo, não fosse por Mariana.

Mariana era a aleatoriedade em pessoa. Se a maioria das regras para as mulheres não funcionava, Mariana simplesmente não tinha regra nenhuma. Às vezes, argumentava até a exaustão. Em outros casos, chorava, esperneava, mordia e chutava. E ele simplesmente não compreendia. Tentava encontrar o padrão nas sardas do seu rosto. Na sua maneira de agir. Tentava usar aquela força toda a seu favor. Era tudo esforço inútil. Mariana, na sua meninice, era incompreensível.

Mariana era a amiga de infância. Melhor amiga da irmã dele, mas com quem ele adorava brincar e implicar com tudo e sobre tudo. Mais nova que ele três anos, ainda assim, davam-se muito bem. Vini era seu grande companheiro, mas Mariana era a sua pessoa favorita no mundo. Tinham tudo em comum, gostavam dos mesmos livros, dos mesmos desenhos, dos mesmos personagens e até do mesmo tipo de música e de comida. Viveram tantas coisas juntos. E era só ela, naquela imprevisibilidade toda dela, que era capaz de dar sentido a tudo que faziam. A primeira vez que comeram bolo de cenoura com cobertura de chocolate. A primeira vez que jogaram Playstation. A primeira vez que leram a série Harry Potter.

Portanto, se ele ia se tornar um rapaz, que o rito de passagem fosse com ela. O primeiro beijo era muito importante, muito definitivo. O seu primeiro beijo teria de ser de Mariana. Mas não seria fácil conseguir isso, porque ele era quase um rapaz e ela era de fato uma menina. André racionalizava como sempre, gerenciava estratégias, escolhia os melhores planos e não chegava à conclusão nenhuma. Afinal, seria justo estragar a inocência dela? Ela que nem ligava para garotos ainda.

A sociedade machista já lhe cobrava uma posição. Todos os seus colegas diziam que beijavam. E embora soubesse que boa parte deles mentia, sabia que estava na hora. As meninas davam em cima dele. Estava ficando sem desculpas. Foi então que ele percebeu que a sua irmã, da mesma idade de Mariana, andava suspirando e piscando os olhinhos para o seu melhor amigo. Agradeceu a Deus o fato de que as meninas amadurecem antes. A hora chegara.

Organizar o jogo de Pera, Uva, Maçã ou Salada Mista foi a parte mais fácil. Bastou uma sugestão aqui. Uma indicação acolá. Seus amigos eram adolescentes no auge da ebulição dos hormônios. Eles adoraram a ideia. Proibir a irmã de participar foi o golpe de mestre. Milena insistiu, perturbou, encheu o saco e convenceu Mariana a participar junto com ela, a presença da amiga diminuía sua chance de levar uma bronca. Verdade que seus amigos adoraram que mais meninas participassem da brincadeira. Principalmente, a sua irmã, tão linda que já fazia os olhares masculinos virarem quando ela passava.

A parte difícil do processo foi controlar o nervosismo. Era um cara equilibrado, um estrategista, mas era complicado, daria seu primeiro beijo, ora bolas. A cada rodada seu coração acelerava, na sua vez, estava completamente disparado. Inventou uma desculpa para Vini. Em geral, não precisava trapacear, mas esse era um caso especial. Não podia perder essa chance. Vinícios era um grande amigo, não discutiu as instruções e quando ele apertou forte, sem controlar a emoção, André disse em alto e bom som: salada mista.

Os segundos em que se olharam antes do beijo com tanto medo, com tanto nervosismo, com tanta insegurança, vão ficar para sempre impressos na sua alma. Falou alguma besteira para Ana Maria, algo sobre um cronômetro. Fazia parte da brincadeira e ele não queria demonstrar que aquilo era tão mais importante do que um dos jogos que costumavam jogar, mas era. Depois, ele tomou a iniciativa e os lábios se tocaram.

Totalmente eletrizante. André ainda não sabia o que era aquilo. Talvez, esteja procurando saber até agora. Por menos de um segundo, pensou que ela fosse desistir. Provavelmente, seria a atitude mais previsível. Ela era tão menina. Menina sim, mas previsível não. Depois daquele instante, Mariana correspondeu ao beijo. Treze minutos inesquecíveis. Uma lembrança para a vida inteira.

Ele estava certo mais uma vez, mais uma jogada de mestre. E agora tinha a certeza absoluta disso, seu primeiro beijo só poderia ter sido com ela mesmo. Pois era somente ela que dava sentido a qualquer coisa que experimentavam juntos.


Esse conto foi escrito por Priscila Urano. Para reprodução ou qualquer assunto de copyright o autor e o blog deverão ser consultados.


Sobre a autora: Priscila é a professora de Português mais maluquinha do ensino médio (que até erra na crase de vez em quando como todo mundo), é mãe da Beatriz, aspirante a escritora, tem livros que não consegue publicar e um blog só dela onde partilha suas histórias, sua experiência como mãe e dicas de literatura infantil. Tem como sonho não conseguir nunca mais entrar numa livraria de tanto adolescente gritando o seu nome e pedindo autógrafo, mas fica feliz quando uma aluna lê o que ela escreveu e se emociona.
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