A Velha dos Correios - Capítulo 1 | Iradex

A Velha dos Correios - Capítulo 1

Esse texto é o início de um livro sobre muitas coisas do cotidiano de diferentes gerações. Tem a ver com nossa cultura e estrutura social e econômica, com perda e aceitação, com mudanças e as diferentes formas de interpretar uma mesma coisa. E, claro, tem um suspense e tanto!

A Velha dos Correios é um texto escrito por Pedro Duarte e distribuído em primeira mão aqui no Contos Iradex. Embarque nessa leitura.


CAPÍTULO 1

Ela trabalhou nos Correios durante 30 anos. Nunca abriu um envelope sequer. Trabalhou no atendimento ao cliente, recebia os pacotes, pesava, colocava as etiquetas e selos que tinha de colocar, cobrava o valor e, antes de entregar o recibo, marcava de caneta o código para rastreamento.

Esse processo foi diferente em diferentes fases ao longo dos anos. Se acostumou a receber menos pagamentos em dinheiro e mais em cartão de crédito, primeiro com papel carbono e uma bugiganga da época. Depois as pessoas assinavam e ela conferia se o portador do cartão era realmente o dono. Mas as coisas mudaram novamente, e bastava alguém saber a senha para usar um cartão... Então, finalmente, desistiu de conferir qualquer coisa de uma vez por todas.

Ela foi diferente em diferentes fases também. Nos primeiros anos era mais amável, as pessoas também eram mais amáveis, menos apressadas e menos cheias de exigências, “todo mundo é cheio de direitos hoje em dia”, costumava dizer sempre que tinha oportunidade. Ou o salário rendia mais e isso a deixava com melhor humor. Ou ainda porque, antigamente, ela tinha a vida toda pela frente.

Foram 30 anos sem faltar um dia, fora as raras vezes que estivera doente. E muito doente. Uma gripe qualquer não a tirava do serviço.

Aquele era seu último dia. Sexta-feira. E fizeram uma festa pra ela. Levaram uns salgados e uns doces, bateram palmas, tomaram refrigerante, deram abraços. Comidinhas baratas custeadas de forma igual por toda a equipe, alguém levou os copos, outro alguém levou os guardanapos, essa coisa toda.

Logo estava de volta à cadeira de sempre. Ao mesmo local que muitas cadeiras diferentes passaram, mas que somente ela havia ocupado ao longo de três décadas. Ela sentou-se, ligou o computador e digitou a senha. A mesma tela. E ela gritou: “Próximo!”. Ela poderia chamar a senha no painel, somente. Mas ela chamou no painel, esperou o bipe e ainda gritou “próximo!”, agitando as mãos.

Um sujeito branco e magro chegou com um envelope pardo na mão. Era um sujeito com menos de 30 anos, nem tinha nascido quando ela já trabalhava lá! Usando fones de ouvido enormes e que nunca dava bom dia, “mal educado”. Entregou o envelope de tamanho grande, A3, já com os dados preenchidos. Era forrado, mas ela não sabia dizer com o quê. Era rígido, revestido por algum outro papel bem mais duro, isso conseguiu sentir quando tateou.

O pegou da mão do rapaz, pesou, colocou os selos e cobrou. Há alguns meses, em outra ocasião, enquanto ele ia embora, notou que o sujeito mancava e tinha uma prótese na perna direita. Mesmo por debaixo da calça jeans, ela notou! Ora, 30 anos olhando as pessoas, não foi tão difícil. E ele repetia o ritual toda semana, afinal, o que torna a dedução sobre a perna mecânica não tão genial quanto ela tinha se convencido, claramente para fugir do tédio.

De todo modo, ela colocou o envelope na cesta atrás do balcão, onde sempre colocava os pacotes, e alguém vinha buscar e mandar pra expedição. Entortou o corpo todo para fazer isso e suspirou profundamente. "O Capenga", ela o apelidara carinhosamente assim que percebeu a prótese pela primeira vez.

Por mais que tivesse curiosidade, nunca perguntou a nenhum cliente o que tinha na caixa, no envelope, no pacote. Não importava quão esquisito fosse, mal embalado, um embolado de papelão e papel marrom e fita adesiva. Ela nunca perguntou. Os colegas que trabalhavam ao lado perguntavam sem a menor cerimônia. Ela achava um absurdo!

O último cliente fora aquele sujeito estranho, manco, com o mesmo envelope pardo que enviava toda semana há meses. Não a cumprimentava, deixava a encomenda, pagava em dinheiro e ia embora. “Branco que nem tinta de parede, magro como uma vara de pescar, comunicativo como uma pedra e totalmente desproporcional. Tão feio quanto esquisito”, descrevia.

O fato é que ela nunca vira o rosto dele na realidade, o que não a impedia de traçar o perfil do sujeito que sempre se escondia atrás dos óculos escuros ou o capuz do moletom surrado. Ele sempre dava um jeito de não ser visto totalmente.

Foram 30 anos de trabalho e ela nunca deu um espirro no lugar errado! “Uma vida inteira, acredita?!”, ela dizia com o orgulho que de fato existia até aquele momento. Então, deu de ombros, balançou a cabeça negativamente para si mesma, pegou o envelope da cesta da expedição e colocou na bolsa. Nem se preocupou em olhar em volta, sabia que os colegas estavam ocupados demais com suas próprias coisas. Bateu o ponto e foi para a saída do prédio. Estava chovendo. Recebeu um aceno de adeus mecânico e respondeu da mesma forma. Enfim, passou pela porta giratória em direção a estação do metrô, como funcionária exemplar dos Correios, pela última vez.

Minutos depois, podia jurar que estava sendo seguida.


Esse conto foi escrito por Pedro Duarte. Para reprodução ou qualquer assunto de copyright o autor e o blog deverão ser consultados.


Sobre o autor: Pedro Duarte é jornalista e escritor de “Tony Moon: está tudo fora de controle, cara!” e "Tony Moon: A Vida Acontece", um livro infantojuvenil e outro de tirinhas. Colaborou com com a Superinteressante, Vida Simples, youPIX e um monte de lugares! Fundador e Editor do Bacanudo, curioso pra caramba e um sujeito bacana!
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