Sm (gr. Kôma) | Iradex

Sm (gr. Kôma)

O infinito pode ser tão fascinante aos olhos de uma criança. Anna definitivamente ama o seu. E o infinito ama Anna. Eles não existem um sem o outro.

Sm (gr. Kôma) é um incrível conto escrito por Andie Gomes e distribuído em primeira mão aqui no Contos Iradex. Embarque nessa leitura.


Sm (gr. Kôma)

Ela estava no topo do mundo. Pelo menos era assim que Anna se sentia sempre que chegava à extremidade da colina, seus olhos viam mais do que ela achava que podia alcançar com seus pequenos pés de menina de 12 anos.

E, como sempre fazia, ela sentou à sombra da única árvore que ali se estendia – a minha árvore, ela dizia a si mesma - passou minutos, ou talvez fossem horas, observando o infinito à sua frente, imaginando histórias sobre as pessoas que viviam nas casas que dali de cima pareciam tão pequenininhas, e nos animais fantásticos que encontraria pela floresta depois da colina se um dia sua mãe a levasse até lá. E então ela ria consigo mesma e deitava, fechava os olhos e brincava de enrolar seus dedos entre a relva.

Anna passaria o resto do dia deitada ali, escutando a música que o vento fazia enquanto passava por entre galhos e folhas, achando engraçado como ele parecia combinar com a leveza de sua respiração. Ela sonharia acordada ou mesmo dormiria um pouco até a hora em que sua mãe lhe chamaria para jantar.

Uma folha caiu da árvore e pousou sobre o rosto de Anna. E foi quando ela, abrindo os olhos, percebeu que havia algo de diferente. Porque não havia vento. Nem uma leve brisa. Era como se o ar tivesse parado de existir. Anna sabia que isso era impossível, mas ela não conseguia se sentir de outra forma. E, ainda deitada, ela viu as folhas caindo dos galhos, uma por uma, perdendo sua cor verde, chegando ao chão e sobre o seu corpo, secas e murchas. A pequena garota se revirou e lutou contra o peso das folhas secas que pareciam prender seu corpo esguio no chão e, quando finalmente conseguiu ficar de pé, ela percebeu que toda a grama à sua volta também havia perdido a cor.

Foi quando Anna escutou o que parecia o som de trovão. Ela olhou para trás, para o seu infinito, e não viu nada além de fogo e fumaça, um céu negro que vinha em sua direção. Então, outro trovão completamente diferente dos que ela ouvia quando uma tempestade estava chegando. Aquele trovão parecia ser formado de vozes. Vozes aflitas, embaralhadas com gritos assustadores e risadas malignas. No meio de tudo aquilo, ela ouviu o seu nome.

A menina começou a correr o mais rápido que pode de volta para casa, apavorada, com lágrimas lhe escorrendo pelo rosto, chamando por sua mãe.

Anna entrou em casa, esperando encontrá-la na cozinha, de braços abertos e com seu sorriso angelical no rosto, pronta para acolhê-la e fazer todo o medo e terror desaparecer. Mas sua mãe não estava ali. Ou na sala. Ou no quarto. Onde poderia estar? Ela estava ali naquela manhã, dizendo para Anna tomar cuidado ao subir a colina, como sempre fazia. Não estava? Sim, ela estava usando seu vestido azul favorito. Ou era verde? Não, era branco. E seu cabelo liso... não, encaracolado e preto. Ou era loiro? Anna não se lembrava. Como poderia não se lembrar? Ela correu até seu quarto, e procurou a foto de sua mãe que havia na cabeceira. Mas não havia nada ali. Nem uma foto. Nem ao menos um porta-retratos. Só uma mesinha vazia, com uma cama vazia, em um quarto também vazio. Anna estremeceu ao perceber que não se lembrava de quando havia visto a sua mãe pela última vez. E que não se lembrava de como era o seu rosto. E nem ao menos lembrava o nome dela. Ou se tinha uma mãe.

Anna começou a se perguntar se havia entrado na casa errada. Mas ela sabia que isso era impossível, pois aquela era a única casa entre o infinito, a colina e outro infinito.

Anna começou a gritar e a chorar mais desesperada, enquanto sentia o medo tomar conta de si. Mas ela parou quando escutou o trovão de vozes novamente, tão forte que fizera a casa tremer. Eles só ficaram mais fortes e mais constantes, como se gigantes estivessem se aproximando da casa. A cada tremor, as vozes pareciam mais altas, mais apavorantes.

Anna não teve coragem de olhar pela janela embora percebesse que a escuridão invadia o lugar como um convidado indesejado. Entre soluços, ela foi dando pequenos passos para trás até chegar ao seu guarda-roupa. Ele estava vazio, como o resto da casa, sem qualquer pista de que aquele era o guarda-roupa de uma menininha. Mas ela estava apavorada demais para pensar ou entender aquilo. Ela fechou a porta do guarda-roupa, e se sentou contra a parede, abraçando os joelhos, pedindo para o nada que aquilo tudo parasse. Então Anna escutou seu nome novamente.

anna... Anna... ANNA...

Como se pudesse lhe proteger e afastar todo o mal que a cercava, Anna colocou a mão sobre os ouvidos, fechou os olhos, e gritou o mais forte que pode.

E então, o silêncio. E o vazio. Anna parou de gritar. Era como se ela soubesse que nada daquilo tivesse acontecido. E que ela não tinha motivo para ter medo. Porque nada daquilo tinha realmente acontecido. E quando finalmente abriu os olhos, Anna se viu em meio a um nada. Apenas a escuridão.

Porque na verdade Anna não é mais uma criança. Ela já não é uma criança há muito tempo. Assim como há muitos anos desde que viu o céu, ou sentiu o vento, ou pisou sobre a grama pela última vez.

Porque há muitos anos Anna está presa, sozinha e isolada em um quarto, deitada em uma cama, sempre com seus olhos fechados, sempre na mesma posição, com braços estirados e tubos saindo deles, indo em direção as maquinas a sua volta. Ela não se parece mais com a menininha que fora um dia. Se pudesse se olhar no espelho, não se reconheceria. E se começasse a falar, acharia que a voz saindo por sua boca pertenceria à outra pessoa. Mas isso não aconteceria. Pois Anna está fadada a continuar presa em sua própria cabeça, onde sonhos e lembranças se misturam e a atormentam em um ciclo eterno. Infinito. Seu infinito.

E então Anna tem 10 anos. Está no parque perto de sua escola, impulsionando o corpo para frente e para trás no balanço, tentando ir cada vez mais alto, porque acha que assim pode alcançar o céu. Ela acha aquilo tão divertido que nem nota que sua mãe lhe chama, pois já é hora de voltar para casa.


Esse conto foi escrito por Andie Gomes para o Contos Iradex. Para reprodução ou qualquer assunto de copyright o autor e o blog deverão ser consultados.


Sobre a autora: Formada em fotografia, vive com a frustração de trabalhar com uma área completamente diferente. Carioca que não gosta do Rio, mas ama São Paulo. Passa mais tempo do que deveria assistindo gameplays no youtube. Viciada em filmes explosivos e sangrentos, apaixonada por vilões, temas sobrenaturais, e tudo o que Neil Gaiman escreve. Adora escrever histórias baseadas em músicas, teorias malucas e sonhos estranhos que tem.
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