A Praia: Parte 3 - Alvorada | Iradex

A Praia: Parte 3 - Alvorada

Às vezes temos momentos tão incríveis em nossa vida, que fica difícil de acreditar que eles realmente ocorreram. Confira o desfecho da história de um desses momentos. Se a história é verdadeira ou não, cabe a você julgar.

A Praia é um conto inusitado, escrito por Gabriel Franklin e distribuído em primeira mão aqui no Contos Iradex. Embarque nessa leitura. O conto foi publicado em 3 partes durante esse mês de agosto.


SUMÁRIO

- Parte 1 - Noite

Parte 2 - Madrugada

- Parte 3 - Alvorada


ALVORADA

A vida dela era diametralmente oposta à minha. Tinha um bom emprego, que lhe permitiu sair de casa e ir morar sozinha alguns anos antes. Mantinha uma boa relação com a família, e aonde quer que fosse era reconhecida e chamada para rodinhas de conversa. Mas, apesar disso tudo, não era feliz. Nem no trabalho, nem com a família, nem com os amigos. Em todos esses ambientes ela não fazia nada além de fingir ser alguém que agora detestava. Vinha arrastando essa farsa por bastante tempo. Tanto tempo que já não lembrava a última vez em que se sentira ela mesma. E o peso de não se reconhecer, nem quando estava sozinha, se abateu sobre seus ombros com toda a força justamente naquele dia.

Havia ido a uma festa de formatura de alguns amigos. Viu a satisfação nos rostos deles, o orgulho transbordando em cada comentário dos pais. E ela simplesmente não conseguia se sentir parte de nada daquilo. Foi invadida por um vazio que era seu velho conhecido. Quando isso acontecia, ela tentava preenchê-lo com outras coisas. Músicas, filmes, livros. Mas geralmente era com álcool que o vazio passava, ou pelo menos diminuía. Foi o que ela tentou fazer na festa. Beber pra esquecer. Beber pra se misturar. Beber pra ser feliz. Mas isso só piorou as coisas.

Não aguentando mais, deu um jeito de se esgueirar por uma porta lateral sem ninguém perceber e caminhou até seu carro. Não achou que estivesse tão mal pra dirigir e por isso saiu sem rumo pelas ruas desertas (é curioso imaginar que nesse mesmo momento eu estava correndo em algum outro ponto da cidade). No meio do caminho para lugar nenhum, o choro começou e com ele veio o descontrole cada vez maior. Com medo de acabar sofrendo um acidente, parou o carro em frente a um ponto de ônibus. Ficou algum tempo ali esperando o mal estar passar e vomitou. Isso a deixou um pouco melhor, mas depois de alguns minutos veio a necessidade de se por em movimento.

Dirigiu por certo tempo e então o pânico se modificou. O carro parecia uma prisão, ficando cada vez menor. Ela precisava sair. Ir para o lugar mais aberto que conhecia. Decidiu ir à praia. Com muito esforço conseguiu chegar. Parou o carro no primeiro local que encontrou. Tentou correr em direção ao mar, mas tropeçou. Tentou levantar, mas caiu. Estava tonta. Não sabia o que fazer ou porque tinha ido até ali. Estava confusa. Recomeçou a chorar e seu corpo foi atingido por tremores. Estava com medo. E nessa hora, eu cheguei.

Ela começou contando a história com uma voz fraca, quase um sussurro. À medida que ia relatando os acontecimentos, ia ganhando mais confiança. Muitas vezes ela se atropelava, como se o pensamento fosse mais rápido do que a formação das palavras. Quando terminou, estava ofegante e olhava pro mar. Percebi que, de certa forma, ela estava mais aliviada. Como se partilhar seu segredo com alguém tivesse removido um peso de suas costas.

“Tem algo que você goste de fazer? Algo que te faça sentir você mesma, sem precisar fingir?”, perguntei depois de alguns momentos de reflexão. Ela também pensou um pouco e disse “Desenhar. Eu amo desenhar”, ainda com certa tristeza. Isso me deu uma ideia. Peguei de novo minha bolsa e fucei até achar o que queria: uma caneta (minha mãe sempre diz pra eu nunca sair de casa sem uma caneta, que escreva, de preferência). Limpei a areia no espaço que ficava entre nós dois, criando uma superfície mais ou menos plana. Estiquei a caneta ainda tampada pra ela e disse “Pois desenha alguma coisa pra mim”.

Pude adivinhar a expressão de incredulidade do rosto dela simplesmente pelo tom de voz da resposta “Como é que eu vou desenhar nesse escuro todo? Mal consigo enxergar isso que você tem na mão”. Ainda com a mão estendida na direção dela, completei “É bom que se o desenho ficar ruim eu não vou poder te julgar”. De novo a risada estranha que aquecia meu coração (com direito a finalzinho imitando porco), e senti a caneta deixando minha mão e indo pra dela.

Ficamos em silêncio a partir dali. Ela desenhando como se tivesse esquecido de mim; eu observando tudo, mas sem conseguir ver quase nada. Até as ondas e o vento pareceram se interromper pra de alguma forma admirar a cena: à medida em que o sol nascia eu ia descobrindo mais e mais dela, um pedacinho por vez. Quase em sincronia com a pálida luz que ia surgindo, ela terminou o desenho, olhou pra mim e sorriu.

Eu não vou descrevê-la (apesar de eu e você já nos conhecermos a algumas semanas, certas coisas eu vou deixar guardadas só pra mim), mas posso dizer que fiquei sem ar por alguns segundos. Sem saber direito o que fazer ou dizer, olhei para o desenho (esse eu vou descrever: era a tentativa de uma gaiola aberta, com passarinhos saindo de dentro). Ela me salvou do constrangimento de falar primeiro e adiantou um “Tá bem ruim, né?”, com certo humor na voz. “É, tava melhor quando eu não conseguia ver direito”, respondi ainda inseguro se o que viria depois seria a risada estranha ou um tapa na cara. Veio a risada.

“Você tá com fome?”, perguntei, aproveitando a coragem que surgira não sei de onde. “Tô morrendo de fome!”, respondeu com entusiasmo. “Pois eu conheço uma padaria que deve estar abrindo agora. Tem uma tapioca divina lá. Se você quiser a gente pode ir...”, falei essa última parte com uma entonação que dava a entender que se ela não quisesse ir não teria problema maior além de eu me matar 10 minutos depois. “Você dirige”, disse me entregando a toalha e um chaveiro. Deu as costas e seguiu para onde descobri estar o carro dela.

Como ela havia vomitado no tapete, (que foi prontamente colocado no porta-malas e me fez torcer pra não sermos parados em uma blitz, pois com certeza iam achar que um corpo estivera ali), tivemos de ir com as janelas abertas, escutando Paul Simon. Eu, com as mãos suando no volante (pois fazia um tempo que não dirigia); ela, com os pés em cima do painel balançando no ritmo da música (já que o tapete asqueroso não tinha conseguido conter toda a vodka com strogonoff de frango).

Na minha cabeça repassei toda a noite anterior: desde o momento em que cheguei à praia quase desmaiando, até o nascer do sol e a descoberta de que muito antes de poder ver por quem, eu já estava apaixonado. E no meio de todos esses pensamentos, surgiu um que se transformou em palavras antes que eu tivesse tempo de cogitar se valia a pena: “Você joga xadrez?”. A cara de incredulidade dela foi impagável. Eu não sabia se ria da sua expressão, ou se chorava por provavelmente ter estragado tudo de novo... Envergonhado pela minha burrice, voltei o olhar pra estrada pouco antes de ela responder “Peão branco para e4”.


Esse conto foi escrito por Gabriel Franklin para o Contos Iradex. Para reprodução ou qualquer assunto de copyright o autor e o blog deverão ser consultados.


Sobre o autor: Gabriel Franklin é formado em Direito e cursa Letras pela Universidade Federal do Ceará. Trabalhou muito tempo como atendente de uma das maiores livrarias do Brasil e dedica-se, desde 2013, a dar opiniões no Iradex, tanto no site como no podcast. Seu objetivo? Ler todos os livros do mundo.
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