O Dia do Yuri | Iradex

O Dia do Yuri

A obrigação de ir pra escola já é por si só muito desestimulante. Mas e quando você é ignorado por seus colegas e até pelos professores, como gostar do ambiente escolar? Mesmo assim, Yuri tenta encontrar ânimo, não só para frequentar as aulas, mas também para superar seus problemas em casa.

O Dia do Yuri é um belíssimo conto escrito por Anderson Shon e distribuído em primeira mão aqui no Contos Iradex. Embarque nessa leitura.


O DIA DO YURI

Olá, meu nome é Yuri Machado Souza Damásio. Um nome incomum contrastando com um garoto muito comum. Tenho 12 anos e estou no 8° ano do ensino fundamental. Sempre fui uma criança muito inteligente, por isso minha mãe exigiu que nas séries iniciais me adiantassem, evitando o que ela chamava de “perder tempo pintando figuras do Mickey”. Não sou daqueles que ama a escola, pois as coisas ainda são do mesmo jeito. Os professores brigam com a tecnologia e arrumam a sala obedecendo a uma ordem alfabética, o que me deixa na última carteira, atrás somente de um Yuri Alencar. Sempre torci que na minha sala estudasse algum Ziraldo, Zeca, Zeferino... mas essa sorte nunca me alcançou.

As horas aqui dentro passavam lentamente e a minha triste inadaptação a essa falida convivência tornava tudo ainda pior. Aquele clichê dos populares acéfalos passeava pelos corredores. As aulas não instigavam, pelo contrário, pareciam canções de ninar. O chato é que sempre havia um diretor que te dedurava aos seus pais dizendo que não conseguia entender por que as crianças não valorizavam aquele espaço de ensino.

A aluna da sala que ganhou o meu coração não fez questão de aproveitá-lo. Ele estava tão colorido, com hidrocor na borda, feito com todo amor, mas ela mostrou para suas amigas, deu risada e o jogou fora. Eu daqui, do fundo da sala, vivia e revivia tudo isso na minha memória. Pensava nessa realidade ansiando a hora de me despedir, de dizer tchau. A escola nunca foi um lar para mim, por isso, minha maior vontade é que chegue o dia em que eu possa me despedir.

- Sâmara...

- Presente!

- Tamires...

- Presente!

- Victor Conceição...

- Tô aqui.

- Responda, presente, por favor.

- Presente.

- Victor Almeida...

- Presente.

- Yuri... – eu nunca sabia se ele estava me chamando, chamando os dois juntos, ignorando a presença de alguns de nós ou só com preguiça mesmo. Como sempre respondíamos juntos, posso concluir que ele aproveitou dessa saída para exercer sua fadiga tradicional justificada pelo baixo salário e por aquele discurso de profissão mais importante do mundo. Até concordo, em partes, mas isso não é um motivo para ele optar por não gastar a voz falando um nome a mais.

 

Já era o fim da aula e pudemos ouvir o som que indicava que havia chegado os trinta minutos mais tortuosos do dia: o intervalo.

– Todo mundo para fora, eu tenho que trancar a sala – a faxineira dizia isso com uma autoridade temporária. Não sabia o real motivo de ser obrigado a sair da sala, aqui é ou não é a minha segunda casa? Será que estão me obrigando a criar uma sociabilidade? Mas sociabilidade forçada não presta, não funciona. Acho mesmo que eles têm medo de manter os alunos em sala para que eles não roubem os pertences dos que não estiverem lá. Isso seria um tiro no pé, seria a comprovação que a escola não acredita na sua própria educação.

Durante o intervalo, eu só fazia fugir daquilo que me afligia: fugia dos valentões no corredor, das meninas que riram da minha cara, da diretora que ficava vigiando se tinha alguém fazendo algo errado, dos professores furando a fila da lanchonete. Estava dentro da escola para fugir dos males sociais que eu encontrava aqui, algo paradoxalmente contraditório.

Eu sempre subia para o último andar e ficava lá sentado nos degraus esperando o tempo passar. Meu incomodo eram os casais que iam para lá aproveitar do mesmo isolamento ao qual eu procurava. Eles se beijavam de forma enlouquecida, era quase a preparação para o sexo, e o pior, não me respeitavam. Minha estadia ali era completamente ignorada. Parece que jovens com ímpeto sexual não conseguem ver nada ao seu redor. Juro que no próximo intervalo eu trarei um pacote de camisinha e um painel luminoso indicando a minha presença.

O sinal do intervalo bateu, era hora de voltar para sala.

– Todos vocês estão lembrados na nossa semana de conscientização dos males da depressão. – um professor magrelo girando uma caneta esferográfica e andando de um lado para o outro falava. – Nós teremos palestras, vídeos, apresentações artísticas, leituras de texto. – ele era o padrinho da nossa sala, mas estava mais preocupado em parecer um bom orientador do que na produção dos trabalhos, pois eu vivia com a mão levantada para conseguir que ele corrigisse o meu texto e nunca fui atendido. – Todo mundo já sabe a sua função. Vamos começar com a leitura dos textos em sala e seus pais estarão presentes, então caprichem. – Ele deu continuidade à aula e o dia escolar, finalmente, havia chegado ao seu fim.

Fui andando para a casa. Morava bem perto, mais ou menos a três quadras dali. Passei por alunos que, surpreendentemente, ostentavam um sorriso de satisfação por todo aquele ambiente, algo inimaginável na minha cabeça. O que me fazia sorrir era essa breve caminhada, pois podia aproveitar de uma paisagem arborizada e de ar puro, duas coisas que estão entrando em extinção.

Minha casa era quase uma caverna: pela manhã estava completamente vazia, pela tarde via somente a minha presença e lá pelo meio da noite meus pais chegavam. Eles não andam muito bem. Tentam me blindar das frequentes brigas, mas o número de lenços encharcados de lágrimas pelo chão é um sinal de como a relação dos dois está se deteriorando. Não sabia o que fazer, como ajudar. Por conta disso, fazia nada.

A ideia de ter minha mãe vendo minha leitura (meu pai trabalha muito e nunca pode faltar) era excitante. Talvez acabaria um pouco com a má impressão escolar formada nos últimos anos. Por conta disso, fui melhorar o meu texto, ver como poderia deixá-lo mais atraente, mais mágico. Entrei na biblioteca do papai, procurei por mais referências. Já podia ouvir os elogios do professor e a turma me aplaudindo de pé. Seria fantástico. Minha mãe me presentearia com um sorriso lindo de gratidão e orgulho. Uma explosão de ansiedade me invadiu. Fiquei tão focado na minha missão que nem vi o dia passando em uma velocidade imensa.

Já era noite. Corri para o quarto da minha mãe para avisá-la de amanhã, mas ela estava dormindo. Roncava alto, parecia ter tido um dia bem longo. Deixei um bilhete do lado do seu celular, tudo bem explicado, esmiuçado e em um local no qual tinha a certeza de que ela veria. Agora era hora de voltar ao trabalho...

O sol raiou, as luzes atravessaram as cortinas e invadiram o meu quarto, me mandando sair da cama. Já havia algum tempo que minha mãe não vinha me acordar, pois estava querendo que meu senso de responsabilidade despertasse o mais cedo possível. Corri para o quarto dela e vi que nem o celular, nem o bilhete e nem ela estavam lá. Espero que tenha lido. Tomei um café rápido e revisei – pela milésima vez – o meu texto. Em anos, foi a primeira vez que sentia novamente uma vontade impressionante de estar na escola. Tranquei a porta com um belo sorriso, aquele seria um grande dia.

Poucos alunos haviam chegado, mas a sala já estava aberta. Entrei, dei bom dia, ninguém me respondeu. Dessa vez era justificável, as pessoas estavam tão focadas nos ajustes finais que não conseguiram tirar a atenção dos seus afazeres. Fiquei olhando pela janela e tive uma grata surpresa, ou melhor, duas: não só minha mãe veio me ver, meu pai também. A sala foi enchendo aos poucos, os pais já estavam posicionados em seus lugares e o professor se preparava para dar início às atividades:

- Antes de abrirmos o dia nacional de consciência dos males da depressão, vou pedir para a aluna Laura ler um texto especial que ela mesmo fez e me pediu para usar como abertura do evento.

Eu queria ser o primeiro, mas não tem problema, Laura escreve muito bem, não será nenhum sacrifício ouvi-la. Ela começou:

– Hoje é o dia de conscientização dos males da depressão, mas nós chamamos de Dia do Yuri, em homenagem à memória do filho do senhor e da senhora Damásio. Depois do episódio de suicídio, muita coisa mudou, sentimos muito a falta dele e acho que todos carregamos um pouco da culpa. Ele só era mais uma criança querendo viver, mas o mundo não é tão fácil quando não se enxerga uma mão estendida, uma mão que te puxe para não cair nos primeiros obstáculos, uma mão que bate nas costas dizendo que deve seguir em frente. Infelizmente, nenhum de nós cedeu essa mão e agora ela está suja de sangue. Desculpe, senhor e senhora Damásio, nunca sentiremos a dor que vocês sentem, mas nos arrependemos muito e isso ainda é pouco. Os esforços para que nenhuma criança se sinta sozinha, isolada, se sinta um peso no mundo estão sendo feitos desde o momento que aquela triste notícia dilacerou a todos nós. É necessário valorizar a importância de cada ser, pois todos são importantes. Por conta disso, em nome dos alunos, em nome dos professores, em nome da escola, pedimos desculpas sinceras. Descanse em paz, Yuri, descanse em paz...


Esse conto foi escrito por Anderson Shon para o Contos Iradex. Para reprodução ou qualquer assunto de copyright o autor e o blog deverão ser consultados.


Sobre o autor: Professor de redação e comunicólogo, Anderson Shon veste sua roupa de escritor e tenta combater o mal (ou não) com suas palavras. Conheça mais do seu trabalho em www.facebook.com/umpoetacronico e www.andersonshon.com.br
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