Espadachim de Carvão: E se Kurgala fosse um mundo alienígena? | Iradex

Espadachim de Carvão: E se Kurgala fosse um mundo alienígena?

Tive a oportunidade de fazer essa pergunta pro próprio Solano no evento de lançamento do livro aqui em Fortaleza ainda em 2013, e qual não foi minha surpresa quando a resposta que eu recebi foi: “E por que não?”. Fiquei com esse “E se?” até recentemente, quando resolvi reler o livro pra me preparar para a sua continuação, O Espadachim de Carvão e as Pontes de Puzur, que será lançado agora em Setembro. Resolvi aproveitar a oportunidade pra por a teoria à prova, tentando ler o livro como uma ficção científica e não como uma fantasia medieval.

O propósito desse texto é brincar com uma hipótese que nem lembro mais se saiu da minha cabeça ou se eu vi em algum canto (se vocês já tiverem visto em outro lugar, por favor compartilhem): "E se Kurgala fosse um mundo alienígena, dentro de uma infinidade de outros mundos habitados pelo Universo afora?"

Passo agora a compartilhar com vocês algumas das minhas observações, mas já adianto que foi uma das experiências mais interessantes desses meus vários anos de leitor. Ah, e quem não leu o livro ainda pode ficar tranquilo que eu não vou dar spoilers da história. =D

O Espadachim de Carvão é o livro de estreia do autor brasileiro Affonso Solano. Em sua aventura fantástica acompanhamos Adapak, um jovem ingênuo que passou toda sua vida dentro de uma caverna e que se vê forçado a encarar o mundo real que antes só conhecia através das páginas de livros e enciclopédias. Esse mundo, chamado Kurgala, é habitado pelas criaturas mais singulares e nos é apresentado através dos olhos ávidos de Adapak.

Como defino ficção científica

Muita gente já fez essa pergunta (eu mesmo me incluo nessa lista) e não é fácil de se chegar a uma resposta, se é que realmente existe uma só. Já vi várias tentativas diferentes, abordando vários ângulos e aspectos. Gostei de algumas, achei outras insuficientes, e acabei formulando uma que me agrada e satisfaz, até o momento.

A ficção científica é uma forma, dentre várias, de se contar uma história, não importando por qual meio (livro, filme, quadrinhos, música, teatro), com a diferença de que nela o autor leva o leitor a percorrer um caminho similar ao que o cientista percorre ao realizar uma pesquisa. Ele constrói o enredo através de um método onde depois da experiência e da percepção vem uma análise racional com base nos resultados, chegando-se a conclusões. Essas conclusões nem sempre partem do autor em si, muitas vezes dependendo do próprio leitor para que sejam completadas.

Essa definição pode ser abrangente, mas é exatamente por isso que ela me agrada. Dessa forma, não ficamos presos a dizer que só é ficção científica o que se passa no futuro ou o que tem robôs, podendo criar e ler obras com outras perspectivas, sem a necessidade sequer de eletricidade!

Ficção científica, no fim das contas, é sinônimo de curiosidade e observação. Por esse motivo foi possível e muito prazeroso realizar a experiência com O Espadachim de Carvão.

Com isso estabelecido, comecei a ler o livro e percebi logo de cara que não seria difícil a minha tarefa. Ao longo da narrativa, o Solano consegue te conduzir exatamente pelos pontos que eu destaquei agora a pouco. Ele te dá elementos do mundo e de seus habitantes aos pouquinhos, pra você ir se acostumando e formando suas bases e regras. Depois ele testa essas regras em várias situações, e você vai aprendendo junto o que pode e o que não pode. Por fim, ele te deixa tirar suas próprias conclusões sobre o que Kurgala é.

A experiência

Vou agora destacar alguns pontos que foram bem legais durante a leitura e que de certa forma podem servir de guia pra quem quiser repetir a experiência.

O primeiro deles diz respeito às várias raças que habitam Kurgala e que fogem daquele padrão de fantasia humano/elfo/anão/orc. Além dessas raças serem física e psicologicamente bem diferentes, é muito interessante ver como se relacionam, apesar e por causa das suas peculiaridades. Isso me lembrou muitas sensações que tive ao ter contato principalmente com obras de ficção científica, como Star Wars e a HQ Saga. As vantagens e desvantagens de cada espécie são apresentadas de forma a que você possa estar ciente das suas possibilidades de ação, e meio que te preparam pra não precisar de explicações mais extensas nas reviravoltas do enredo.

O segundo ponto relaciona-se com uma das coisas que mais me chamou a atenção no livro: a ausência de metais em Kurgala. As armas, bem como os utensílios domésticos, são fabricados com outros materiais. No caso das armas, elas são provenientes dos ossos de um enorme e centenário animal. Já as facas de cozinha e de caça são geralmente de madeira. Sim, de madeira! E ai você pergunta: como isso poderia se encaixar em uma ficção científica? Te respondo nos levando novamente à Star Wars, mais especificamente ao livro Herdeiro do Império. Nele, em uma determinada passagem, nos é apresentado um mundo onde a tecnologia praticamente não existe como nos outros pontos do Universo, e o povo que o habita utiliza apenas armas de guerra convencionais, como lanças e arcos (com flechas feitas muitas vezes de ossos). Ora, se isso seria possível nesse mundo, porque não em Kurgala?

O terceiro e último ponto que eu gostaria de ressaltar é sobre a discussão filosófica acerca de inteligência e alma nO Espadachim. Durante a aventura, conhecemos os mellat, teoricamente servos dos Quatro Que São Um. Diz-se que eles são como marionetes, sem livre arbítrio, apenas cumprindo ordens, o que faz com que muitas vezes sejam desprezados pelas outras raças. Os questionamentos que vem daí são tão interessantes quanto os que vemos ao nos deparar com os robôs de Asimov ou os Cylons de Battlestar Galactica! O que é necessário para se ter inteligência? E emoções? Pode-se falar em ética quando estamos falando sobre mellat e robôs? E o legal é que as respostas pra essas perguntas tem que partir de você!

Por fim...

Gostaria mais uma vez de ressaltar que não foi minha intenção aqui dizer que essa é a maneira correta de ler O Espadachim de Carvão, ou que é a única. Longe disso. Tentei apenas fazer um convite para que exercitemos, nessa e em outras obras, uma teoria não tão difundida no meio acadêmico: a de que, dependendo da forma como se lê um texto, literário ou não, o sentido inicialmente proposto pelo autor pode mudar. Assim, o leitor é muito mais ativo na sua relação com a obra, completando-a e às vezes até modificando-a durante sua leitura.

Claro que isso fica bem mais fácil de se fazer quando você já conhece a obra, mas nada impede que possamos fazer isso também da primeira vez que formos ler algum livro. Basta manter a mente aberta e não se prender tanto a rótulos e classificações.

Por isso, ande pelos caminhos de Kurgala e fique na dúvida se a qualquer momento pode aparecer um sabre de luz, ou se um sepu vai virar e dizer “Mentira!”, ou até mesmo se os mellat poderiam começar uma rebelião cylon!

No princípio, Kurgala era mar. E então Os Quatro Que São Um desceram.