Chevy 62: Parte 3 - O Jardineiro Galês | Iradex

Chevy 62: Parte 3 - O Jardineiro Galês

Quando aprenderemos tudo sobre a morte? Como aprenderemos? Depressão. Dor. Falta. O vazio daquele que parte. O que é realmente deixado? Qual o fim daqueles que olharam para o defecho da vida de uma pessoa querida?

Chevy 62 é um conto lotado de referências, escrito por Gabriel Franklin e distribuído em primeira mão aqui no Contos Iradex. Embarque nessa leitura. O conto foi publicado em 3 partes durante este mês de julho.


SUMÁRIO

- Parte 1 - Henry

- Parte 2 - Querido

- Parte 3 - O Jardineiro Galês


O JARDINEIRO GALÊS

À medida que ela caminha pelo cemitério, uma dúvida lhe vem à mente: não tem a menor ideia de quantas sepulturas existem ali. Poderia fazer uma estimativa, já que uma vez contou o número de jazigos da ala onde Henry e Drogi estão sepultados: 150. Mas esbarra em outro problema, não sabe quantas alas compõem o cemitério. Irá tirar a dúvida perguntando amanhã ao zelador, porque hoje é segunda feira e ele está de folga. Amanhã será o dia de folga do segurança noturno. Na quarta, o do diurno. Já o coveiro nunca tira folga, mas ela evita falar com ele, pois é o único que é tão antigo ali quanto ela (os outros são funcionários novos).

Por quase vinte anos ela fez suas visitas somente nas três datas. Três que viraram cinco, pois ela acrescentou os aniversários de nascimento e morte de Drogi (o dia de Finados servia para os dois). Mas logo essas cinco viraram sete, uma vez que ela sentiu necessidade de estar perto deles no aniversário dela e no Natal (apesar de ela ser judia e Drogi ateu). Ela parecia querer inventar desculpas para não ficar sozinha em casa ficando sozinha ali.

Não recorda ao certo quando foi que começou, mas a partir de um certo momento a ala que ela visitava (todo domingo e em mais quinze datas ao longo do ano) deixou de ser um mar cinzento e passou a ganhar vida. Cada sepultura estava enfeitada com um arranjo de flores variadas, cada uma com cores e perfumes diferentes. O efeito era tão bonito que ela resolveu parabenizar à administração do cemitério pela iniciativa. Mas ao procurar o zelador da época, este se mostrou tão confuso quanto ela, pois afirmou que isso já vinha acontecendo há algum tempo e não era obra nem dele, nem do segurança noturno e nem do diurno (do coveiro com certeza não era).

E o mistério de como as flores foram parar ali (e somente ali, pois o resto do cemitério continuava cinza) durou mais algumas visitas, até que no aniversário do dia em que conheceu Drogi, ela descobriu o responsável. Como não tinha dormido nada na noite anterior, ela resolvera ir mais cedo do que era seu costume. Percebeu ao passar pelo portão que era justamente a troca de turno entre os seguranças, pois nenhum dos dois estava na guarita. E ao chegar à ala, viu um senhor de cabelos brancos e boina curvado sobre uma lápide, ajeitando um buquê de rosas brancas. Ficou ali de longe observando a cena, enquanto o metódico sujeito depositava arranjos em cada um dos 150 túmulos da ala, inclusive as de Henry e Drogi. Ao terminar, ele sentou-se num banco e ficou a contemplar o resultado de seu trabalho.

Foi dessa posição que ela o reconheceu. Desde que passara a ir com mais frequência ao cemitério, sempre vira esse senhor sentado a um banco de distância do seu. Como seria impossível que ele fosse exatamente nas mesmas datas que ela, o mais provável é que ele estivesse ali todos os dias. E isso a intrigou profundamente. Tanto que também passou a ir todos os dias, bem cedo, para presenciar o ritual de embelezamento das sepulturas. Sempre respeitava o momento, esperando até que ele terminasse para tomar seu lugar no banco de costume. Não se falavam. Não trocavam nem sequer um olhar. Apenas contemplavam aquela pequena ilha de cores em meio ao mar cinza.

E assim continuou por anos, até o dia em que o banco dela não estava lá. Ficou parada durante o ritual, pensando no que fazer. O banco mais próximo era o dele, mas ela não sabia se deveria quebrar a rotina que vinham cultivando há tanto tempo. O certo é que em pé ela não ficaria. Ao término da troca dos arranjos, ele tomou seu lugar costumeiro no banco e pôs-se a admirá-los. Ela, ainda insegura, encaminhou-se lentamente até o banco e sentou-se na ponta oposta à dele. Ficou esperando uma reclamação, mas nada veio. Achou que ouviria ao menos um respirar mais profundo, demonstrando irritação; mas isso também não veio. Aos poucos foi relaxando e se deixando ficar ali, vendo o cenário de outra posição. Não eram mais as sepulturas de Henry e Drogi que estavam à sua frente, mas isso não a incomodou. De certa forma, ela sentiu como se um peso tivesse lentamente sendo retirado de suas costas.

No dia seguinte, seu banco estava de volta. Mas ela não pensou duas vezes e foi sentar-se no banco do misterioso senhor. Novamente esperou por protestos que não vieram. Nem nesse, nem nos vários dias que se sucederam. Às vezes ela levava um de seus livros, que ela mesma traduzira para o francês, e o lia em voz alta. Em outras, era ele quem cantava tristes canções em uma língua que ela nunca tinha ouvido, e por isso resolveu achar que era galês. Mas na maioria dos dias, como hoje, eles apenas compartilham o silêncio e a melancolia. Não há razões para saberem os nomes um do outro, ou sequer suas histórias. Já chegaram na etapa da vida onde as palavras mais atrapalham do que ajudam. Passadas as três horas da sua visita, ela se levanta e vai embora sem se despedir, assim como faz em todos os outros dias. Ele continua lá.

Enquanto caminha rumo ao mar de cinza, ela pensa que realmente ainda não sabemos lidar com a morte. Nem a dos outros, e nem a nossa. E acha difícil que algum dia nós saibamos, mesmo que a civilização chegue a três mil anos. O pensamento já está se transformando em tema para um possível novo livro quando ela chega ao estacionamento. Está praticamente vazio nesse momento; apenas duas vagas estão ocupadas, como sempre. Ao entrar no seu carro, já tem o enredo completamente formado, inclusive com a dedicatória. Um leve sorriso surge em seus lábios ao dar a partida, pois é sempre instigante começar um novo livro. Tão empolgada estava, que perdeu uma parte da rotina diária: olhar no retrovisor e ver ficando para trás o Chevy 62.


Esse conto foi escrito por Gabriel Franklin para o Contos Iradex. Para reprodução ou qualquer assunto de copyright o autor e o blog deverão ser consultados.


Sobre o autor: Gabriel Franklin é formado em Direito e cursa Letras pela Universidade Federal do Ceará. Trabalhou muito tempo como atendente de uma das maiores livrarias do Brasil e dedica-se, desde 2013, a dar opiniões no Iradex, tanto no site como no podcast. Seu objetivo? Ler todos os livros do mundo.
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