Chevy 62: Parte 2 - Querido | Iradex

Chevy 62: Parte 2 - Querido

Quando aprenderemos tudo sobre a morte? Como aprenderemos? Depressão. Dor. Falta. O vazio daquele que parte. O que é realmente deixado? Qual o fim daqueles que olharam para o defecho da vida de uma pessoa querida?

Chevy 62 é um conto lotado de referências, escrito por Gabriel Franklin e distribuído em primeira mão aqui no Contos Iradex. Embarque nessa leitura. O conto será publicado em 3 partes, sempre às terças-feiras, até o dia 21 de julho.


SUMÁRIO

- Parte 1 - Henry

- Parte 2 - Querido

- Parte 3 - O jardineiro galês


QUERIDO

Seu segundo pedaço teve vários nomes ao longo da vida. Foi chamado de Canadense, Herói, Sargento, Chefe, Pai. Mas para ela, houve apenas um nome: Drogi. Assim o chamou desde o dia em que se conheceram, quando ele nem sabia o que significava, até o dia em que se despediram, quando já se comunicavam apenas por olhares, e palavras não eram mais necessárias para ele saber que era o Querido.

Ele sobrevivera a duas guerras, um câncer e a inúmeros infartos. Contrariando todas as expectativas, morreu durante o sono, na cama deles. Cama essa que presenciou vários dos momentos que passaram juntos. Decepções e inseguranças. Traumas e esperanças.  Vida e Morte. Foi nela que Henry nasceu. Foi nela que choraram quando veio a notícia do acidente. Com tantas histórias a lhe impregnar, como o suor que fica nos lençóis em uma noite muito quente, ela não consegue mais dormir na cama. Quando dorme, é no sofá, na sala que parece vazia, mesmo com tanta coisa empilhada nos cantos.

Há muito que não se preocupa mais com sono. Um velho hábito que ela e Drogi compartilhavam, e que se tornou ainda mais forte depois que ele partiu. Pra falar a verdade, ela tenta se lembrar de alguma vez que tenham dormido uma noite toda e não consegue. Logo que se casaram as noites eram passadas em claro dando vazão a todo o amor que sentiam e à simples alegria de estarem vivos. Depois veio Henry, e o amor tomou outra forma com os choros que não tinham hora para começar, nem para terminar. Quando Drogi foi novamente para a guerra, a vigília passou do prazer à tortura, como se ela tivesse acordado de um sonho maravilhoso para entrar num pesadelo.

E os pesadelos pareceram ter se impregnado no quarto, na cama talvez, pois contagiaram Drogi depois que ele retornou. Com a precisão de um relógio suíço recém-calibrado, toda noite ele acordava na mesma hora, não sabendo ao certo se estava nas florestas de Ardennes ou às margens do rio Imjin. Demorava alguns segundos até perceber que não estava rodeado de corpos, e que o rosto que o fitava no escuro não estava aterrorizado, apenas preocupado. Como voltar ao sono era impossível para ambos, eles passavam o resto da noite fazendo companhia um ao outro, até o dia raiar. Às vezes conversando sobre qualquer coisa que os levasse para longe dos horrores da guerra; outras apenas de mãos dadas, encarando o teto ou ouvindo a chuva bater na janela.

O tempo foi passando, mas os traumas não foram sendo superados. De tal modo que em um determinado momento eles resolveram aceitar sua condição de notívagos e utilizar esse tempo para realizar algo útil. Ele começou a construir brinquedos para Henry e a aprender astronomia. Ela começou a escrever. Após a morte de Henry, uma estranha melancolia se abateu sobre os dois. Ele vagueava sem rumo na casa procurando algo que precisasse ser consertado. E ela... Bem, ela continuou a escrever.

Nas mesmas datas em que ela fazia sua peregrinação, ele ia até a velha casa na árvore, que a essa altura mal lhe cabia, e ficava horas relendo os livros e as revistas em quadrinhos que fizeram a infância de Henry. Nesse momento ele era transportado no tempo, e ainda conseguia ouvir as risadas que o faziam esquecer que havia tristeza no mundo.

Por já ter tido muito contato com a morte, Drogi nunca a acompanhava em suas visitas ao cemitério. E quando o fez, foi em seu uniforme completo, inclusive com as gastas botas de salto marrons e as medalhas no peito, pronto para dormir um sono sem pesadelos, onde não seria atormentado por todos os jovens que tiveram suas vidas interrompidas pela estupidez dos homens.


Esse conto foi escrito por Gabriel Franklin para o Contos Iradex. Para reprodução ou qualquer assunto de copyright o autor e o blog deverão ser consultados.


Sobre o autor: Gabriel Franklin é formado em Direito e cursa Letras pela Universidade Federal do Ceará. Trabalhou muito tempo como atendente de uma das maiores livrarias do Brasil e dedica-se, desde 2013, a dar opiniões no Iradex, tanto no site como no podcast. Seu objetivo? Ler todos os livros do mundo.
Sobre o projeto: Contos Iradex é uma iniciativa daqui do site de colocar textos, contos, minicontos ou até livros mais curtos para a apreciação de vocês, leitores. Emendaremos algumas sequências com materiais da própria equipe e, em seguida, precisaremos de vocês para mais publicações. Se você tiver uma ideia de projeto, envie um e-mail para gabriel@iradex.net.