A Vil Cria da Praga | Iradex

A Vil Cria da Praga

A pequena monarca o tratava com todas as honrarias e em troca o tosco roedor a entretia todo o dia. Com o passar das primaveras, as risadas e murmúrios das recreações infantis que se ouviam nos corredores do castelo, passaram para eco de nomes sujos, canções heréticas e gritos extasiados no meio da noite.

A Vil Cria da Praga é um conto escrito por Yuri Perkowski, distribuído em primeira mão aqui no Contos Iradex.


A Vil Cria da Praga

Trecho de carta de Sir Gasparo Fortitudo à Companhia dos Eruditos Artífices de São Tomásio de Ravêrni.

“[...]

Em conversas com outros menestréis, ouvi alguns companheiros relatarem sobre um velho guarda que vigiava um charco nas proximidades de Drusdon. Tal ancião tinha algumas narrativas desorientadas e um tanto inflamadas sobre uma cidade devastada, o berço de uma praga. Na ocasião dei pouca atenção aos contos dos ébrios colegas, mas recentemente ouvi a trova de Sir Grigori Kräsenkov intitulada “A vil cria da praga”. A obra do renomado confrade discorre sobre a aparição de uma horrenda criatura nas cercanias da casa de veraneio de um lorde próxima ao lago Drusdon, que leva o nome da cidade.

Convicto que existia uma ligação entre os fatos, segui só nessa jornada para tal pradaria alagada atrás do velador que ali permanecia. Nos meus primeiros passos naquele charco, já se tornara claro o motivo de tal local ser tão ermo. Um lodaçal sem fim que em sua partes mais rasas, a água suja me afundava as boas botas até mais da metade. Acompanhando aquela água pútrefa, um cheiro asqueroso começava a adentrar as minhas narinas. A cada passo o fedor não aumentava em uma razão crescente, mas mutava, horas como a fossa entupida de uma morgue, horas se apresentava como o atraente perfume doce dos cabelos de uma meretriz. Já a muito caminhar nessa profana comarca, um pensamento veio a me alfinetar, em tal terra tão lodosa e de poças abissais, não se ouvia a torta sinfonia dos grilos, dos sapos ou das corujas. Pensando bem, nem sequer uma mosca morosa veio à me atormentar.

Ao encontrar aquela decrépita figura protetora, entendi a razão dos relatos serem tão espaçados e desconexos. O vigilante wasseriano trajava uma surrada tabarda, estampada com algo que falhava em lembrar uma carroça e uma balança toscamente costuradas no peitoral. Consigo também carregava uma longa lança surpreendentemente bem cuidada e uma espada embainhada presa ao cinturão. Ao me aproximar, o que mais me chamava a atenção era seu grande bigode alvo e os penetrantes olhos negros sofridos, desgastados com a típica descoloração dos mais longevos. Aquele semblante era o retrato da solidão.

Após uma breve sessão de alertas ensaiados sobre a localidade, me apresentei. A princípio não revelei minhas reais intenções investigativas. Contei-lhe que havia me perdido e clamei por abrigo naquela soturna noite. O ancião, um tanto receoso, manteve o discurso de que aquelas eram terras malditas e que o perigo ali se escondia até nas mais baixas relvas. Tomei a abordagem do afeto e lhe mostrei um dos odres, enfatizei que aquele era vinho oriundo das colinas de Protea. As carrancudas feições agora deram lugar a um largo sorriso, e a mim todas as honrarias de um contente anfitrião foram concedidas.

As acomodações eram módicas, mas minimamente confortáveis. Com o passar da noite o nobre guardião consumia com deleite o doce vinho. Contei-lhe das famosas desventuras do príncipe Olleg, que aos ouvidos de um ermitão eram todas fantásticas, e melhor, inéditas.

O que vem a seguir é uma reconstrução de relatos acronológicos daquela noite, de um ébrio e senil guardião de um charco, então peço a compreensão dos excelentíssimos colegas.

Um conto sobre a cidade de Stanbrück, ele veio me contar. A cidade em que pedra sobre pedra não restou para se estar. A sina da princesa Broomhilda, uma história que mostra que o mal pode sempre nos visitar.

Em um tempo em que os tomos da torre de Humgoth ainda eram desconhecidos, a próspera e pacífica cidadela de Stanbrück era um polo para mercadores no meio oeste. Um posto seguro onde povos das mais distintas pastagens se encontravam para praticar a fina arte da barganha. E nas noites, evidentemente, se preservarem dos perigos das estradas. Uma cidadela de muros sólidos e arquitetura wasseriana digna dos maiores arquitetos gavrilianos do período. No interior de sua amurada, largas ruas propícias para o tráfego das caravanas. Todas as vias culminavam na praça central onde o comércio era praticado em grande escala.

Em uma bela manhã de primavera, a pacata e ordeira cidadela de Stanbrück um estranho visitante recebeu. Um rato de pelos negros, olhos intensamente amarelos e de eloquência inigualável ali se estabeleceu.

O peculiar roedor não adentrou aos portões se esgueirando. Muito pelo contrário, o animal entrou pelo portão central e ao olhar do guarda ainda uma reverência o fez. Existia algo incomum no olhar daquele pequeno ser, ele fazia os gatos se acovardarem e seus semelhantes o negarem. Em pouco tempo, Fals o rato, como ficou conhecido, discursava na praça sobre conhecimentos escusos em medicina, dialética e alquimia; elucidava sobre as insólitas crenças do povo Raaja e entretia os menestréis mais eruditos com hediondos poemas a muito esquecidos.

Certa data, a filha de Kristoff, o regente da cidadela, caiu de cama com um tipo agudo de escarlatina. Na busca da cura, todos os medicastros, monges e sábios que foram chamados, falharam miseravelmente. Em um ato de aparente benevolência, o inusitado roedor se prestou a tratar da enfermidade da herdeira. Fals, com seus conhecimentos do insólito, trouxe de volta Broomhilda do destino dos homens. Naquela noite, laços foram criados.

Após esse episódio, o rato caiu nas graças do regente. Kristoff colocou a peculiar criatura em um posição de conselheiro, e mais, fora considerado amigo pessoal da família régia. Aos poucos o inevitável aconteceu, Fals se tornou o amigo, o confidente da ingênua menina.

A pequena monarca o tratava com todas as honrarias e em troca o tosco roedor a entretia todo o dia. Com o passar das primaveras, as risadas e murmúrios das recreações infantis que se ouviam nos corredores do castelo, passaram para eco de nomes sujos, canções heréticas e gritos extasiados no meio da noite.

Na mesma época, toda a corte local acometeu-se de alguma moléstia, que os deixaram com a pele amarelada, semelhantes aos mais graves enfermos. Segundo relatos dos serviçais malfadados, o comentário interno era que vômitos e crises de disenteria eram comum no meio das sessões reais. Isso quando haviam sessões, com o tempo se tornou comum ouvir que o regente estava indisposto, e seguia recolhido em seus aposentos. As aparições da nobre herdeira agora eram muito raras, e Fals o rato já a muito não discursava na praça.

Até o fatídico dia, onde o regente já estava a uma semana sem sair dos seus aposentos, quando Bohdan, o antepassado do guardião do charco, adentrou a suntuosa suíte. Ao entrar, o que se sentiu foi o nauseante cheiro de urina, após o primeiro baque se percebeu que tudo estava coberto com toscos escritos gravados com excrementos. As repulsivas escrituras cobriam a maioria do espaço das paredes do quarto do monarca, embaixo da mobília e até entre as páginas de seu diário haviam fezes.

O corpo do nobre regente wasseriano estava desfalecido e disposto abaixo de sua cama, o “amarelão” agora tinha novas proporções, os tons eram de algo perto da casca de uma laranja bem amadurecida. O próprio Bohdan pegou o corpo de Kristoff no colo. Apesar dos dois metros e treze que media, o regente não devia estar pesando mais do que um roto saco de grãos.

Após todos os preparativos fúnebres serem encaminhados, alguns sábios da mais alta cúpula foram levados aos aposentos do finado monarca, para que examinassem o que jazia ali manuscrito de forma tão asquerosa. Diziam alguns deles que ao começarem a ler aqueles escritos, uma forte enxaqueca os consumia forçando a pararem, mas não sabiam definir se tal tormento era causado pelo conteúdo nefasto do texto ou pelo forte odor impregnado no local.

Em seguida da morte de seu regente ser noticiada, um sentimento de tristeza cobriu a cidadela. Acredito eu que as condições específicas do acontecido tenham sido ocultadas perspicazmente.

Agora os fatos começam a ficar tétricos. Durante o funeral, a pira feita para consumir os restos do regente não consumiu o corpo totalmente. Um mal agouro, diziam os mais supersticiosos.

Broomhilda, apesar da pouca idade, sofreu todos os encargos dos herdeiros. Seguiu-se um período de regências tortas onde Fals ostentava o título de mentor e conselheiro regencial. A chaga que assolava a casa dos nobres, chegou ao ponto de envenenar suas mentes. Rumores de casos de agressões, auto mutilações e suicídios entre a monarquia corriam pelas ruas de Stanbrück.

No primeiro dia de inverno, os acólitos de Fals pregaram avisos de um grande pronunciamento da precoce regente Broomhilda. Durante o seu discurso, os mais perceptivos já tinham notado algo de diferente na pobre menina. Com as mãos sobre uma protuberante barriga a regente proclamou:

“Com muito orgulho, carrego em meu ventre o filho daquele que nos tanto elucidou; Fals, o eterno amante.”

Sem muitas delongas, a jovem aristocrata agarrou a asquerosa criatura e deu-lhe um longo e lascivo beijo, o desejo carnal emanava do ato. O estado de choque atingiu a todos com a força de um coice de um garanhão malcriado. A feição de nojo estampava muitas caras na multidão, podia se notar os olhos confusos a procura de amparo. Como se não bastasse, a monarca seguiu com sua fala:

“Mas os convoquei aqui não para demonstrar meu amor ou para anunciar minha gravidez. Os trouxe aqui para que se iluminassem ao testemunhar o nascimento do novo herdeiro de Stanbrück”.

Ali mesmo no púlpito da praça, a moça se despiu, e de cócoras começou a expelir aquela cria repulsiva. Talvez pelo absurdo da situação ou por outros motivos escusos, a população não tinha forças para esboçar alguma aversão. Via-se alguns cidadãos entrando em estado de catatonia e outros nem conseguiam desviar o olhar.

A pequena herdeira entoava o nome da perversa besta, intercalando com urros de dor, risadas histéricas e gemidos regozijantes. O que saiu das partes daquela moça era algo que não se deve colocar em palavras. Não penso em descrição que faça jus a tal feições chacais. Aos que conseguiam encará-la, ali existiam traços paternais, mas o que conferia o parentesco com aquele sórdido rato eram aqueles penetrantes e horrendos olhos amarelos.

O que se seguiu após aquele dia de horror foram semanas da mais pura barbárie entre a população. Aos que sobreviveram ao período de extrema selvageria, viram os novos filhos de Fals tomarem os escombros da antes virtuosa cidade. Das mais fundas catacumbas da cidadela, colossais ninhadas de ratazanas de olhos amarelos emergiram devorando o que se prostrava em seu caminho. Dizem que ao fim dos dias podia-se ouvir os ratos roendo as pedras das amuradas.

Bohdan, o antepassado, e mais um grupo de cautos sobreviventes acharam por bem lacrar o portão principal e atear fogo a cidadela.  A última coisa que se viu, em meio aos escombros flamejantes, foi a horrenda cria, o último filho da burguesia. Em meio ao fogo a criatura guinchava, chorava e ria.

[...]”


Esse conto foi escrito por Yuri Perkowski para o Contos Iradex. Para reprodução ou qualquer assunto de copyright o autor e o blog deverão ser consultados.


Sobre o autor: Yuri Perkowski é um cara que gosta de desenhar monstros e contar suas histórias.
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