Cartas do Mundo: África do Sul | Iradex

Cartas do Mundo: África do Sul

Luiza,

A gente tenta programar a vida como tenta programar nossas viagens. Fazemos planos, antecipamos nossas rotas, sonhamos com o que vamos encontrar, mas nem sempre as viagens ou a vida saem do jeito programado. E a forma de lidar com a angústia quando as coisas não correm como queríamos é um aprendizado constante. Até onde vai o nosso controle? Eu queria ter essa resposta.

Na hora que decidi que iria passar férias na África do Sul, minha maior expectativa era conhecer a Savana. O programa todo incluía um tempo maior nas cidades, principalmente pela questão da grana, pois fazer um Safari não é nada barato. Os hotéis são caros e você depende de guias especializados. O que foi possível comprar naquele momento foi um pacote de três noites e quatro games, que é como eles chamam as saídas de carro à busca dos animais. Seria o ponto alto da viagem.

A viagem começou maravilhosamente bem na lindíssima Cidade do Cabo e, depois de alguns dias de expectativas superadas, acordamos cedo e partimos para o aeroporto rumo a nossa aventura africana. A aeronave era pequena porque não existem pistas que comportem jatos em meio a Savana e o gracioso turbo hélice decolou num dia esplendoroso nos levando rumo ao parque Kruger. Cochilei um par de horas e fui acordada por insistentes comunicados da cabine de comando. Parte pelo meu despertar sonolento, parte pelo sotaque impossível do inglês sul-africano falado num intercomunicador de avião, só fui dar conta que não aterrissaríamos na Savana, quando o avião arremeteu. Tão perto! Mas não deu. Com tempo desfavorável, tivemos que procurar pouso seguro em Johanesburgo, há quase 500 km dali.

Desembarquei meio desnorteada e o tratamento ríspido recebido pela Cia aérea não ajudou. Mesmo embarcando no dia seguinte, perderíamos metade do Safari. E onde vamos dormir? O que faremos quatro dias em Johanesburgo? E ainda senti aquela dor no bolso porque sabia que o dinheiro pago não seria devolvido, pois essas são as regras da aviação e do contrato da reserva do hotel.

Respirei fundo e decidi que iria achar uma solução. Notei que alguns passageiros conseguiram transporte por vans das suas agencias de turismo. Eu não teria essa moleza. Mas se dá para ir por terra, porque não ir de Uber?

(Pausa para dizer que estava com o Felipe, que em nenhum momento reclamou de nada. Daquele jeito dele, só me ajudou. Talvez pelo seu caráter, talvez porque praticamente já nasceu viajando, provavelmente pelos dois motivos, não achou nenhum absurdo eu e ele irmos de Uber para um safári na África)

O aplicativo funcionou e coloquei o endereço.
Quatrocentos e muitos quilômetros.
O app me informou que o motorista estava a caminho. Uma Mercedes. Isaac.
Isaac chegou, confirmei que iriamos a até o meio da savana. OK.
Eu, Felipe e Isaac, companheiros de viagem pelo coração da África do Sul.
Aprendi uma palavra nova em inglês: “garage”.
Nos perdemos.
Eu e Felipe sem celular. O celular do Isaac perdeu o sinal.
Anoiteceu.
Pensei que estava vivendo algo meio absurdo.
Conversamos um pouco sobre nossas vidas.
Felipe dormiu um pouco.
Paramos para comer numa cidade chamada Nelspruit. No McDonald’s.
Um pedinte muito bem vestido me pediu uma ajuda. Dei.
Isaac pediu informações na língua local num posto de gasolina.
Ele nasceu ali por perto, mas fazia anos que não ia por lá.
Continuamos nossa jornada.
Nos perdemos de novo.
Horas e horas na estrada.
Achamos o caminho e entramos no parque Kruger.
Estradinha de terra que adentra a Savana.
Eu, Felipe e Isaac, cansados, admiramos uma manada de cervos.
Falamos sobre estarmos separados de leões, leopardos e elefantes pela nossa linda Mercedes alugada.
E sobre pneus furados.
Rimos. De nervoso.
Chegamos ao Hotel-Chalé. O dono nos esperava no pequeno lobby.
Me certifiquei que Isaac teria estacionamento e local seguro para dormir.
Eu e Felipe fomos conduzidos ao chalé, apenas com uma lanterna.
Fomos avisados para não abrir a porta ou janela até o amanhecer.
Era quase meia noite no breu da savana.
Não tínhamos nenhum contato com a civilização. TV, rádio, telefone, internet, nada.
Caímos na cama e dormimos.
Na manhã seguinte fomos para o nosso primeiro game.

Eu não sei o que teria acontecido se o avião tivesse conseguido pousar e meus planos tivessem seguido seu curso. Eu não sei o que teria acontecido se eu desistisse do Safari ou esperasse até o dia seguinte.

Mas sei que eu e o Felipe não teríamos partilhado essa história nas nossas vidas. Não teríamos conhecido um McDonald’s em Nelspruit. Não teríamos conhecido o Isaac. E talvez eu não tivesse a experiência extraordinária de encarar um leão tão de perto, num daqueles momentos que você sente o significado de estar vivo. Mas isso é outra história que eu te conto num outro dia.

Eu continuo sem ter ideia o quanto levamos e o quanto somos levados. O quanto dos nossos erros são acertos. O quanto do que deu errado na verdade deu certo. Eu também continuo fazendo meus planos.

Das viagens e da vida. Mas cada vez menos eu me importo se eles seguem ou não a rota que eu tracei. E você?


Cartas ao Mundo é uma série especial, escrita por Adah Conti sobre suas viagens.
O destinatário costumava ser apenas seu filho, Felipe, mas agora somos todos nós. Conheça o mundo pelas palavras de Adah.