Sinais | Iradex

Sinais

Em um mundo onde estamos todos contidos em nosso próprio universo, olhar pro lado pode mudar uma vida.

Sinais é um conto escrito por Emilia Braga, distribuído em primeira mão aqui no Contos Iradex. Embarque nessa leitura.


Sinais

Subia lentamente as escadas do prédio olhando cada degrau. O mundo estava tão distante, ela não entendia muito bem o que havia acontecido minutos atrás. Absorta. Sempre errava a posição da chave tetra, mesmo morando no mesmo lugar há mais de ano, mas hoje ela colocou na posição correta de primeira, e quando se apercebeu, já estava sentada na cozinha, olhando para o filtro de água. Aérea. Quanto tempo passou desde quando subiu no ônibus até estar ali? Normalmente demorava cerca de 30 minutos, mas naquele dia, especialmente, a aula terminara no final da tarde, então estava tudo diferente. Estava tudo diferente. O apartamento estava em silêncio, assim como sua mente. Alheia. Era necessário falar com alguém, mas não havia uma viv'alma naquele velho apartamento. Seria feriado prolongado nos próximos dias, e as outras meninas viajaram para passar os dias em suas casas. Ela deveria estar ali, naquela cidade, naquele lugar, naquele instante. Acaso? Destino? Propósito? Resolveu sacar o telefone da bolsa, respirou fundo para organizar o pensamento e ligou pra mãe. Contou brevemente sobre sua semana, da expectativa para o término do curso de inglês e do quanto sua conversação havia melhorado e, quando se sentiu confiante, com a fala saindo tranquila, contou do incidente daquele fim de tarde.

Tinha saído da prova cansada, caminhou os metros que separavam o cursinho do ponto de ônibus que, naquele horário, já estava bem cheio. Cerca de vinte pessoas, todas de pé, viradas para o lado de onde vinham os ônibus, com olhos atentos para não perder o seu, já que o transporte público é bem deficitário, ainda que seja na capital do país. O ponto fica em uma praça, com um pequeno recuo para que os ônibus encostem. Há um abrigo com banco que aparentemente ninguém senta àquele horário, uma vez que não dá pra ver qual linha se aproxima. Há uma faixa de pedestre para quem vem do outro lado da avenida, abaixo do semáforo que fica no limite entre esta praça e o comércio, de tal forma que as pessoas ficam praticamente de costas para a faixa e alheias aos eventos que acontecem atrás de si. Todas, exceto ela que acompanhava o movimento da avenida e observava as pessoas, um costume que tinha desde o ensino médio, quando seu professor de redação disse que boas histórias podem surgir de momentos ordinários da vida. Não sabia, porém, que as histórias poderiam acontecer com ela. O sinal fechou, e nenhuma sinal do ônibus que a levaria para casa. Mais uma vez, girou o corpo e observou as pessoas que continuavam a chegar na praça. Vários ônibus já haviam carregado muitas daquelas que esperavam, mas era fim de expediente de trabalho, e as pessoas pareciam brotar do chão. Fecha sinal, abre sinal. Nada. Fecha sinal, pessoas atravessam na faixa. Dessa vez seu olhar mais atento torceu para que aquele senhor magro, de passos lentos, conseguisse chegar à calçada antes do sinal abrir. Na capital os motoristas evitam buzinar, mas naquele horário as pessoas ficam mais nervosas, e ela torceu que ninguém apressasse para que o senhor alcançasse a calçada, e deu tempo! Tadinho, ela pensou, todo tortinho.

Virou-se para a esquerda, na esperança de que seu ônibus viesse dessa vez. Ainda que usasse óculos para corrigir o astigmatismo, ela não conseguia ver nitidamente coisas distantes. Apertava os olhos sempre que se aproximava algum ônibus, na esperança de que fosse o seu. Não era. Lembrou do senhorzinho, todo tortinho, com sua camisa de botão e mangas curtas, calça branca, e o procurou para ver que direção ele tomara. Apertou os olhos e percebeu que ele se aproximava da multidão, e que agora ela conseguia vê-lo melhor. Sua camisa estava amarrotada e sua calça suja. Olhou-o dos pés à cabeça e percebeu manchas de sangue na roupa. A partir deste instante ele teve toda a sua atenção.

Olhou para os lados e ninguém a estava acompanhando nisso. Era como se fosse uma realidade alternativa, com dois universos acontecendo ao mesmo tempo, no mesmo lugar. O senhor caminhava entre as pessoas do ponto de ônibus que, no máximo, se afastavam para abrir-lhe caminho. Ela resolveu se aproximar, e os olhos do senhor a fitaram com angústia.

- O senhor está bem? - perguntou, se aproximando.

O senhor tentava balbuciar algumas palavras, mas nada saía. Ele chacoalhava o corpo inteiro, tinha a roupa toda suja como se tivesse caído. O sangue que sujara a camisa vinha de sua boca, além das manchas de vômito pela roupa e peito.

- Venha, sente-se aqui - ela apontou para o banco do ponto de ônibus. Olhou para os lados e ninguém estava olhando o que acontecia ali. Ninguém.

O senhor carregava consigo uma pasta de plástico contendo diversos papéis. Ela apanhou a pasta, dizendo-lhe que buscaria ali alguma informação que pudesse ajudá-los, uma vez que o pobre senhor não conseguia falar uma só palavra que fosse compreensível. Ele tremia, batia as pernas, como que em um ataque epilético, ou como um Parkinson violento. Ele prendia uma mão sob a axila oposta, e tentava segurar com o outro braço as pernas, deitava no banco mas tornava a sentar novamente. Ela o olhou por alguns instantes, atônita, sem saber o que fazia, se o ajudava nessa empreitada de conter os chacoalhados do corpo, ou se buscava algum telefone de quem o conhecesse. Mesmo narrando a história ao telefone, ela não conseguia explicar a situação inteira pra mãe, que a essa altura, já pedia que ela dissesse logo o que havia na pasta. Na praça com tantas pessoas, ninguém parecia se importar com o que estava acontecendo até que, enfim, um rapaz os viu e foi socorrer. Aparentemente ele o conhecia, o chamou pelo nome, e tomou a missão de segurar suas pernas. Dizia o rapaz que este senhor era um conhecido fundador de uma financiadora local renomada (até pra ela que não era da cidade). Disse também que deveria segurar suas pernas para que fizessem o mínimo movimento até que chegasse o socorro, e que isso era necessário para manter seu "coração artificial" funcionando. Ela voltou a dar atenção aos papéis da pasta, até achar um número para emergências. Falou pausadamente para o senhor que iria ligar para o número do papel, e assim o fez, ainda que o velhinho balançasse negativamente a cabeça. Conseguiu falar brevemente com seu filho, que disse que chegaria ali em alguns minutos. Agora que o rapaz já o ajudava, ela pode ir até uma das lanchonetes próximas pegar alguns guardanapos para limpá-lo. Pediu licença, o limpou, ajeitou sua camisa, trazendo um pouco de dignidade de volta. Fechou a pasta e sentou-se na ponta do banco, próximo à cabeça do senhor que aparentava estar mais calmo e os três ficaram aguardando que chegasse seu filho.

Alguns minutos se passaram, e um carro encostou no recuo dos ônibus. Ela e o rapaz o reergueram e o apoiaram até que alcançasse o banco do carro.

- Ele sabe que tem que ficar em casa, só sai pra rua para dar trabalho e passar vergonha! - disse o filho. - Não quer tomar os remédios, aí sobra pra gente.

- Por favor, leve-o para o hospital. - ela disse.

- Sim, sim, vou levá-lo agora! Ele é que é teimoso demais. Mas vamos fazer a bateria de exames de novo, não é, meu velho? Muito obrigado mais uma vez.

Fechou a porta do carro e saiu. Logo atrás do carro, coincidentemente, encostou o ônibus que ela apanharia para casa, e prontamente subiu sem sequer se despedir do rapaz que a ajudara naquela praça deserta, cheia de pessoas.

Passou a roleta e sentou-se em um banco vazio, e agora, só agora, parou para pensar. O que aconteceu ali? Por que aquele senhor "fugiu" de casa? Dizia o rapaz que os braços e pernas deveriam ficar contidos para que o coração artificial não fosse sobrecarregado. Será que era verdade? E se ela não estivesse ali, como aquele senhor conseguiria ser notado naquele ponto de ônibus cheio de estátuas? Por que o filho dele o tratava daquele jeito? Pensou nisso por todo o caminho até em casa, e agora estava sentada na cadeira, olhando para o filtro, com o telefone na mão esquerda e revivendo tudo novamente.

Quando terminou a história, sua mãe lhe sugeriu que ligasse no dia seguinte para o número que ficara registrado em seu celular, e assim tentar conseguir responder algumas perguntas e, principalmente, se o senhor estava bem. Tão logo desligou a chamada com a mãe, chorou. Chorou confusa e triste pelo senhor, porém feliz e aliviada pelo que pode fazer por ele. Pegou o celular, foi no registro de chamadas e apagou definitivamente aquele número de telefone.


Esse conto foi escrito por Emilia Braga para o Contos Iradex.
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Sobre o autor: Emilia Braga é bióloga, doutora em Ecologia e ama observar o mundo ao redor. Sofre de verborragia crônica e de fraqueza aguda por brigadeiro.
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