Serial Reader: Jantar Secreto | Iradex

Serial Reader: Jantar Secreto

Certa vez, num banheiro público, havia um poema:
“Tudo na vida tem
Um começo,
Um meio
E um foda-se.”

Vocês já devem ter ouvido falar do Raphael Montes. Autor, jovem, quatro livros de sucesso no currículo e um hype enorme. Até então só tinha lido dele “O vilarejo” - gostei do livro, lembro vagamente de uns cagaços durante a leitura, mas não foi uma obra que me marcou a ponto de merecer mais que 3 estrelinhas no meu goodreads. Eis que “Jantar Secreto” entra na minha casa, entra na minha vida e agora me considero devota da Igreja de São Raphael Montes, esperando só o dinheiro entrar na conta para pagar a fatura do cartão e poder comprar os outros dois livros dele que não li – “Dias perfeitos” e “Suicidas”.

Sentei para escrever esta review minutos depois de terminar o livro – são 8 da manhã e virei a noite sem dormir, lendo. Até tomei um cafezinho para me manter acordada, mas vejo que foi desnecessário visto que a adrenalina do livro ainda está correndo solta nas minhas veias. Na primeira página eu já estava sorrindo: a citação de abertura é do grande, glorioso, salve-salve Rubem Fonseca, o que aumentou consideravelmente minhas expectativas, porque um livro que começa citando Rubem Fonseca já começa bom. Mostra que o autor pode até não ser tão talentoso – o que definitivamente não é o caso - mas bom gosto com certeza ele tem.

Jantar secreto” conta a história de quatro amigos, Dante, Hugo, Leitão e Miguel, que vieram do interior para a cidade grande, cheios de sonhos e em busca de novas oportunidades. Vendo-se diante de uma situação aparentemente sem saída, surge a ideia de realizar jantares secretos para clientes ricos e sedentos por novas experiências e novas maneiras de gastar dinheiro. Os jantares secretos, spoiler alert, envolvem carne humana. Algo que começa como uma ideia louca e inconsequente acaba tomando proporções grandes demais, do tipo que deixaria tio Hannibal orgulhoso. Dante, o protagonista e narrador, é o personagem ideal para encabeçar a trama e ele é construído de uma maneira tão realista que é quase como ler o relato de um amigo. Um relato surreal, diga-se de passagem. Ainda que Dante nos alerte, já na primeira página, que vamos concluir que ele é um monstro sem coração, confesso que achei dificílimo não torcer por ele. O carisma de Dante é tanto que nem me incomodei com a gritante ausência de personagens femininas na trama. Gostaria que o livro tivesse mais que uma única personagem mulher com personalidade, falas e enredo? Sim, mas nem tudo é perfeito.

A escrita do Raphael é fluida, envolvente e sem rodeios, você se vê mergulhando de cabeça no livro já no primeiro capítulo. O talento dele para contar uma história é inegável e temos na obra 360 páginas de puro deleite. Acho que de todas as leituras relacionadas à carne que já fiz, essa foi a primeira que me fez pensar seriamente em aderir ao vegetarianismo. O que é irônico, visto que eu já não como carne humana mesmo (embora tenha curiosidade de experimentar, não me julguem, me ajudem). Este trecho, em especial, foi um dos meus preferidos:

“Essa é a mesma ignorância que faz com que você não mate um bicho, mas coma a carne dele disponível no mercado (...). Temos pena do porquinho e da vaquinha, mas adoramos um bom bife ancho. Meu pai já dizia que a beleza sempre ocorre no particular, enquanto a crueldade prefere a abstração.”

Entre intervalos na leitura, mandei áudios e mais áudios sobre a indústria da carne para o meu vegetariano preferido (beijo, Igor!), enquanto ponderava também sobre os outros diversos momentos de crítica social espalhados pelo livro. É curioso ver como um romance policial aparentemente descompromissado pode despertar tantas reflexões.

Gostaria de poder falar mais sobre o livro, mas tenho receio de que algum comentário que me pareça inofensivo acabe sendo spoilery e por nada nesse mundo quero ser responsável por estragar, mesmo que minimamente, a experiência maravilhosa que é a leitura desse livro. Parei de lê-lo por volta da página 200, pois precisava dormir – e  tinha prometido a mim mesma que não ia fazer nenhuma analogia culinária brega, mas não resisto - parar a leitura na metade foi como ser forçada a interromper uma refeição incrível e guardar o que sobrou para comer depois. Continuou incrível, claro, mas o ideal mesmo é comer tudo de uma vez só.

Se até então você não tinha ouvido falar de Raphael Montes, autor, jovem, quatro livros de sucesso no currículo e um hype enorme, só posso dizer que: o hype é merecidíssimo. Num gênero dominado por autores gringos, é realmente uma delícia - vou terminar com analogia brega? VOU SIM! - saber que “Jantar secreto” é uma iguaria literária tipicamente brasileira.


Ana Negreiros é atriz, leitora, mãe de dois gatos, louca por tatuagens e viciada em Red Bull em recuperação. Ela acredita em lobisomens.