Cartas do Mundo: Paris | Iradex

Cartas do Mundo: Paris

Gustavo e Lívia,

Dizem por aí que você deve criar qualquer coisa menos expectativas. Discordo. Expectativa é grande parte do combustível que nos faz aguentar a rotina. Mas certamente ela pode nublar uma viagem que poderia ser muito mais luminosa. Mas de qualquer forma, quando tudo parece estar dando errado, algo imprevisível pode marcar um lugar para sempre na sua alma.

Saindo do aeroporto, peguei um trem para uma estação central e empurrando a malona até o hotel não senti nada do que eu esperava. Só dor no braço. Naquela época as malas não tinham rodinhas e eu ainda carregava malonas que continham roupas em abundância e itens inacreditáveis. Nem passava pela minha cabeça que na Europa as pessoas compravam shampoo e cotonete na farmácia da esquina. Melhor levar do Brasil. E eu não ia levar mochila pra Europa. Isso era (ainda é?) coisa de gente descolada e rica querendo se fazer de pobre. Eu levei a malona e carreguei a malona e carreguei as tias da Mooca na minha cabeça, tagarelando que a gente não pode fazer feio na França que é lugar de gente fina e elegante. Minha bisavó italiana foi ama de leite por lá e as histórias deviam vir desde aquela época.

Passando pelas ruas, procurando o hotel, os prédios de arquitetura típica não me provocaram faniquitos borbulhantes, pois eu já tinha visto cópias deles nos bairros nobres de São Paulo. Nada de música ou romantismo. Achei que era porque eu estava cansada e provavelmente com TPM. Certamente no dia seguinte Paris se apresentaria esplendorosa para mim.

Porém, antes do esplendor, eu tive que enfrentar uma recepcionista mal humorada e um elevador surreal que mal cabia uma pessoa e que desovava seu ocupante entre dois andares. Não estava quebrado. Era assim mesmo. Aí subi eu, depois subiu o malão e depois subi eu carregando o malão pelo resto das escadas. Cheguei num quartinho que muitos achariam muito romântico, mas eu só achei apertado e assustador, não por causa de fantasmas, mas por ser no fundo de um interminável corredor sem nenhuma rota de fuga. Sim, eu que já dormi muito bem em lugares realisticamente perigosos, dormi mal na primeira noite em Paris, me sentindo numa ratoeira. E ainda nem falei do chuveiro. Porque não tinha. Banho foi numa banheira minúscula com água em gotas na torneirinha. Delícia.

No dia seguinte respirei fundo, aceitei que minha alma tinha mesmo ficado na Inglaterra e decidi aproveitar o máximo o que pudesse. Não me entendam mal. Paris é mesmo belíssima. Casas, pontes, galerias, tudo é um luxo. Mas na verdade eu não tenho nada a ver com aquilo. Fui para Paris porque eu ainda ouvia vozes externas mais do que as minhas próprias.

A catedral de Notre Dame é bela e eu subi um trilhão de degraus para quase morrer sem fôlego, agarrada na bendita gárgula que eu fiz questão de ver de perto. O Louvre é esplendoroso mas lotado de tanta coisa que você fica igual ao urso do pica pau. E a Monalisa? Uma coisinha ridícula fotografada por turistas ansiosos por todos os ângulos. E os parques? Espetaculares e intocáveis. Na Inglaterra, talvez pela falta de dias ensolarados, se estiver seco, todo munda se estatela na grama para curtir uma leitura ou um sanduba. Em Paris se você pisar na grama é preso. Tem cadeiras e bancos para isso, é claro! Mas você fica meio constrangido porque só tem gente magra, bem vestida e que come sem fazer barulho e sem melecar os cantos da boca e as mãos. Fiquei imaginando como os franceses eliminam os restos da comida ingerida. Deve ser com muita classe.

Falei que ninguém em Paris fala Inglês? Ou não sabem ou se recusam. Parisiense fuma, toma café, lê jornal e te olha com cara de nojinho. Não vão te dar conversa sobre qual é o melhor queijo, vinho ou crepe. E ainda por cima fui me arriscar num restaurante fino. O dia do restaurante da viagem. Dinheiro separado para comer num restaurante em Paris. Não falo francês. Não entendi nada do cardápio. Fiz uni duni tê e apontei algo. O garçom desandou a falar um monte de coisas. Não entendi uma palavra. Ele se irritou, bufou e ficou apontando para cabeça. Depois de uns minutos de pânico, entendi que eu estava pedindo miolos de boi. Ele queria confirmação. Tentei falar bife. Bife é uma palavra latina, não? Só sei que ele se foi e depois de um tempo trouxe algo que parecia uma carne com aspargos. Comemos, pagamos e agradecemos, com o nosso melhor merci, ao garçom com cara de nojinho. Ele bufou. Ah Paris, Paris!

Mas não desista. O que você muito espera pode não ser aquilo tudo, mas o que você acha que será sem graça pode te surpreender. E a torre me conquistou. A tão manjada Torre Eiffel é muito, mais muito mais bonita de perto. Nenhuma foto ou réplica faz jus a sua beleza. E foi lá que tive a mais interessante experiência na cidade.

No elevador, a ascensorista avisou no modo simpático dos franceses para que tomássemos cuidado com as bolsas, pois os larápios abundavam pela área. Então, grudada na minha pochete (!!!!), tentando salvar os meus parcos euros, subi na torre e descobri que para mim Paris é uma cidade de telhados. Vista de cima ela é perfeita, linda, harmônica. E nessa hora de contemplação, provavelmente porque me viu sozinha naquele momento, uma mulher de burca se aproximou e começou a puxar conversa. Naquele tempo o islã não estava tão na mídia e confesso que fiquei espantada com aquela pessoa envolta em tecido preto, coberta dos pés à cabeça, incluindo o rosto. O dia estava quente e eu, apesar da pochete, estava me esforçando para parecer elegante conforme instruções adquiridas na família de imigrantes.

Ela falou comigo através do pano que tinha apenas pequenos quadradinhos vazados na região dos olhos. Falou primeiro em francês, e quando eu disse que não falava a língua, ela imediatamente passou a falar fluentemente a língua de Shakespeare.

Depois de alguns segundos de adaptação, entendi que conversava com uma mulher da minha idade, turista como eu, e engatamos num papo sobre quais lugares tínhamos mais vontade de ver na cidade. Contei para ela sobre o elevador estranho e ouvi sobre a sua experiência de navegar pelo Senna. Por incrível que pareça não me recordo seu nome, mas guardo na memória que ela nasceu no Marrocos e que sua família era da Arábia Saudita, onde ela morava. Lembro perfeitamente do diálogo que tivemos, de como rimos juntas falando do mau humor dos franceses e da resposta que ela me deu quando perguntei sobre a burca.

Pois é amigos, mesmo quando as expectativas desmoronam na sua cabeça, uma viagem sempre pode trazer algo inesperado. A conversa com a mulher da torre foi para mim um daqueles momentos da vida que a gente muda. Mesmo que não perceba na hora. Porque muitos encontros são banais. Mas outros são definitivos. Mesmo que durem minutos, são essenciais para definir quem você é. Foi a Cidade-Luz que me ensinou a viajar com malinha. E que me ofereceu algo absolutamente inestimável.

Je vous salue, Paris!


Cartas ao Mundo é uma série especial, escrita por Adah Conti sobre suas viagens.
O destinatário costumava ser apenas seu filho, Felipe, mas agora somos todos nós. Conheça o mundo pelas palavras de Adah.