Serial Reader: O Sorriso da Hiena | Iradex

Serial Reader: O Sorriso da Hiena

“É possível justificar o mal quando há a intenção de fazer o bem?”

É em torno desta premissa que gira a história de O Sorriso da Hiena, de Gustavo Ávila. O texto a seguir não contém spoilers, mas se você faz a linha Igor "Reações-E-Sinopses-Também-São-Spoilers" Vieira (beijo, Igor!) talvez esse texto não seja tão spoiler free assim. Não vou descrever situações, nem dar informações que tornem os desfechos óbvios, mas essa review é essencialmente composta de emoções e reações que eu tive lendo o livro e por que eu o recomendo muito. Mesmo. De verdade. E também não é um texto sério então se você está procurando uma crítica de fundamento, procure outra – existem várias, inclusive, porque o livro está bombando.

O Sorriso da Hiena (deduzo que vocês já viram uma hiena “sorrir”, pelo menos em O Rei Leão - se não, o livro tem seu momentinho de explicação do título) conta a história de um psicólogo infantil, William, que como bom homem cis hétero cuja vida tá ótima resolve que não está tudo tão bem assim e precisa de um probleminha para animar as coisas. Na verdade, ele acha que não faz o suficiente para tornar este grande mundo de meu deus um lugar melhor. Eis que chega uma proposta de David, um homem que, de cara, você já percebe que não é dos melhores, e essa proposta é bastante questionável (pra não dizer escrota mesmo). Porém tal proposta escrota daria ao William a chance de realizar um estudo que ele deseja conduzir desde o tempo de faculdade – e acredita ser necessário – para entender como se desenvolve a maldade humana. David quer descobrir se o trauma que ele sofreu na infância foi o que o tornou um homem cruel. Segundo sua lógica, a melhor maneira de descobrir isso seria causando este mesmo trauma em outras crianças, que então se tornariam objeto de estudo de William. Assim ele poderia acompanhar o crescimento delas e descobrir quão influente seria aquele trauma em suas vidas. Então tá, né?

Temos também o detetive Artur (spoiler: melhor personagem), cujo nome não está na sinopse do livro, mas aparece já na página 20, então achei por bem mencionar, especialmente porque ele é um dos grandes motivos que faz o livro funcionar tão bem. O Artur possui Síndrome de Asperger, que segundo a Wikipédia é “uma condição neurológica do espectro autista caracterizada por dificuldades significativas na interação social e comunicação não-verbal” – em outras palavras, ele não tem filtro. Isso rende não apenas tiradas ótimas, mas também um personagem bem acabado, bem desenvolvido e absurdamente carismático justamente porque ele não tenta ser.

Existem outros personagens relevantes – todos bons – mas o livro gira em torno desses três. Todo escrito em terceira pessoa, ele possui uma narrativa uniforme, independente de onde está o foco. A prosa do autor é natural, levemente rebuscada (mas bem levemente mesmo, não vá esperando uma literatura barroca só porque eu falei rebuscada) e flui muito bem. Confesso que as primeiras 50 páginas não me prenderam a ponto de eu ficar tristinha por ter que pausar o livro pra dormir, mas foram mais que suficientes para mostrar – e muito bem – que eu tinha um livro bom em mãos. E no fundo é isso que importa mesmo, porque ninguém merece ler mais que 50 páginas de um livro bosta.

Da metade para o final, foi só emoção. Não necessariamente porque mil coisas acontecem, mas porque a narrativa toma forma de um jeito muito envolvente e você (no meu caso, sem perceber) já criou uma ligação forte com aqueles personagens. Inclusive até dei uma pausa no livro para mandar áudio pro amigo (beijo, Luciano!) que o indicou pra mim, e desabafar sobre um determinado personagem (além de fazer Luciano passar uma leve vergonha por escutar meu áudio em público).

É muito prazeroso ver que o autor não subestima a capacidade do leitor e não desperdiça momentos criando dramas desnecessários. As 261 páginas do livro são muito bem aproveitadas e surpreendentemente suficientes para construir toda a história e dar a ela um desfecho bem desenvolvido. Se eu ainda trabalhasse em livraria, com certeza iria recomendar esse livro para quem viesse – seja você leitor de Kafka ou Stephenie Meyer – porque a beleza d’O Sorriso da Hiena é justamente essa: ele é capaz de alcançar qualquer público, o que eu acredito ser uma característica que livros bons costumam ter em comum. Esse livro inclusive começou como um projeto independente, publicado pelo próprio autor, e depois conseguiu o selo de uma editora.

O autor, Gustavo Ávila, merece elogios à parte. Não apenas pelo talento nítido que se reflete nas páginas que ele escreveu, mas também por ser um que-ri-do. Sim, paguei de fã mesmo, pois fui à sessão de autógrafos dele aqui em São Paulo, sem ter lido o livro ainda (e quase tomei spoiler na fila porque tinham uns caras falando alto enquanto discutiam a história – dica amiga: não seja que nem esses caras, fale baixo). A ideia era pegar um autógrafo para o amigo que me recomendou o livro, mas comprei outro pra que o Gustavo também autografasse o meu. Não sei se no fundo do meu coração eu já sabia que ia gostar (afinal livros com essa temática compõe 70% da minha biblioteca pessoal), mas o Gustavo foi tão simpático que naquela tarde mesmo pedi ao santinho que me fizesse amar o livro. Que bom que no fim das contas foi algo que eu não precisei fazer nenhum esforço para que acontecesse.

Um livro interessante, intrigante e bem escrito, que eu recomendo sem reservas para qualquer pessoa que goste de suspense e esteja em busca de um novo autor brasileiro para chamar de seu. Nem só de clássicos ou livros de YouTubers vive a seção de Literatura Brasileira das livrarias – nossa literatura contemporânea tem muita coisa boa para oferecer, e O Sorriso da Hiena sem dúvida é uma delas.


Ana Negreiros é atriz, leitora, mãe de dois gatos, louca por tatuagens e viciada em Red Bull em recuperação. Ela acredita em lobisomens.