A Encruzilhada | Iradex

A Encruzilhada

Às vezes, tudo que queremos é voltar atrás.

A Encruzilhada é um conto escrito por Diego Rodrigues e distribuído em primeira mão aqui no Contos Iradex. Embarque nessa leitura.


A ENCRUZILHADA

Comemorando uma data feliz vivi o dia mais triste, pois foi nele que vi minha filha, junto ao ocaso, sumindo na curvatura da terra para sempre no infindo horizonte. Desde que ela se foi, levou embora com este último sol o frágil significado que eu reconhecia como meu.

À noite – sempre à noite –, em várias circunstâncias e lugares, alguns rascunhos se exibem a mim insinuando à minha míope esperança que pode ser a Natália desta vez: uma voz que se destaca nessas conversas de garotas  num timbre agudo e muito peculiar, vinda dos bancos de trás desses ônibus; os passos de saltos femininos que marcam o tempo nestas ruas frias e silenciosas; silhuetas esguias e fisionomias pálidas, parcialmente banhadas pelos letreiros de neon das ruas do centro. Mas não adianta, pois são miragens. Apenas miragens. E me dou conta que já é noite sempre tarde demais.

Relembro, então, que toda característica natural da Natália – que eu ainda poderia chamar de familiar – vai pouco a pouco se perdendo, por assim dizer, em algum lugar deste terreno baldio cheio de entulhos de imagens em tons envelhecidos que chamamos de memória. E eu já nem sei mais porque me ponho a racionalizar. Basta a noite e os seus rascunhos: o telefone, ou  a campainha – uma nova miragem para que essas lições não existam mais.

Na fila do caixa do supermercado, hoje cedo, com o brilho opaco do sol iluminando a nossa fila, ouvi uma garota insistindo com a mãe para ir à festa de uma colega no final de semana. A mãe, cerrando os dentes, negava, justificando: “Seu pai me disse pra te por de castigo. Chegou a fatura do cartão e você andou comprando sem a nossa permissão.” Subitamente lembrei da nossa antiga casa. As fofocas, mágoas e demandas. Basicamente, toda insatisfação familiar rodava sempre sobre mim.

Meu ex-marido, Pedro, nunca castigou a Natália. Me falava das falhas como se dissesse com isso: “Você falhou na educação da nossa filha.” Por isso, é claro, ela jamais o confrontou. Nunca precisou. Meu pai me cobrava as responsabilidades do Pedro com as contas que ele, por vezes, atrasava ou deixava de pagar. Minha mãe, por sua vez, se queixava para mim das grosserias do meu pai. Seja de quando ele bebia, ou de quando passava muito tempo na oficina do tio Laércio, que ficava ao lado da casa da dona Tânia, uma velha viúva de lábios roxos com quem meu pai teve um intercurso há alguns anos. E eu, sempre ali, me acostumei a distribuir os juízos para todas as direções.

Foi Pedro que ficou sabendo da gravidez da Natália, uma semana antes da festa que estávamos lhe preparando. Mas eu que a esbofeteei na mesma noite em que soube. “Acho que você esqueceu que foi com dezessete anos que  engravidou de mim, mãe.” – disse ela, com pesadas lágrimas nos olhos – “Será que a vó te deve uma bofetada também?” Chorei demais naquela noite.

Pedro, com sua fraqueza e covardia parasitárias, tentou me consolar, mas me fez sentir ainda pior. “Eu também fiquei furioso, mas uma bofetada não tira um bebê da barriga, Mônica. Não precisava disso.” Ele nem percebeu o quanto me feriu. Eu queria mesmo é que a fina sensibilidade dele lhe permitisse perceber o efeito avesso do seu consolo, mas, infelizmente, as lágrimas que eu demarrava por remorso eram iguais as que começaram a cair pelas palavras dele.

Ele ouviu dois rapazes do estoque de uma empresa onde ele foi fazer uma entrega falando que a Natália “... que mora naquela casa azul, na rua sul do fim da encruzilhada das plantações...” estava grávida de um rapaz da escola. Foi me contando e se referindo a ela da forma mais baixa e nojenta possível. Pai, marido ponderado? “... uma bofetada não tira um bebê da barriga, Mônica.” Esse aforismo idiota, embrulhado nessa intenção ignonante de consolar, algumas vezes, eu confesso, até já me fez rir.

Durante a festa da Natália, Pedro e seus colegas  de costumes  refinados – que não possuíam a elevada e especializada formação necessária para comer em pratos e garfos descartáveis sem fazer uma cagança nas mãos – me pediram para pegar “pratos e garfos normais”. Enquanto eu estava na cozinha começou uma briga entre alguns colegas de Pedro de um lado, e meus irmãos e meu pai do outro. Pedro ficou apenas olhando. Ouvi Miranda, minha irmã, e minha mãe me chamando. Não sei por quanto tempo ficamos em volta daquele tumulto, mas um tempo depois, em que alguns já tinham até mesmo ido embora, subi no nosso quarto para pegar a caixinha de medicamentos e vi o guarda-roupa aberto e a carteira do Pedro também aberta em cima da cama.

Chamei-a, mas não tive resposta. Desci e deixei a caixinha com Miranda e fui até a encruzilhada, chamando a Natália. Vi ao longe, na estrada oeste, Natália indo embora junto ao sol. A princípio, atordoada com minha mãe e Miranda me chamando para ajudar nos curativos, pensei que Natália devia estar apenas querendo um tempo sozinha para os lados do bairro comercial, que ela tanto adorava; fui então atender meus irmãos e meu pai.

Estava no meio de todos, ouvindo todas as reclamações. “Afinal de contas, Mônica, por que o bosta do teu marido chamou os colegas dele pra festa que era da Natália?” Eu nada tinha a dizer. Ele apareceu na varanda, e gritou perguntando onde estava a Natália. Não respondi. Não queria. E ninguém, pra falar a verdade, lhe deu a mínima atenção.

Alguns minutos depois, Pedro, tomando talvez um pouco de coragem, se aproximou de todos nós para falar comigo.

– Onde está a Natália? Sumiu todo o dinheiro da minha carteira, Mônica. Onde é que está a Natália?

Após isso a única perplexidade que acometeu a todos foi o fato – o ridículo fato! – de não conseguirem imaginar que a Natália seria capaz de pegar dinheiro na carteira do Pedro sem ter a nossa permissão. Quanto a mim, porém, hoje não mais no meio de todos, divorciada e sem meus pais, retorno agora a este terreno baldio e cheio de entulhos por pensar na menina da fila que usou o cartão do pai, ou na mãe que, cerrando os dentes, negava, justificando.


Esse conto foi escrito por Diego Rodrigues para o Contos Iradex. Para reprodução ou qualquer assunto de copyright o autor e o blog deverão ser consultados.


Sobre o autor: Diego Rodrigues é de Porto Alegre, casado, pai de uma vira-lata linda com heterocromia e pós-graduando em História Social. Seja pela intromissão da altivez, ou pela reserva da modéstia, não se define, mas descreve: transita por diferentes discursos que abordam a experiência humana.
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